Seleccionar o ângulo de um rosto, sem lhe macular a luz, como se, a meia voz, pudéssemos reter os múltiplos reflexos do júbilo e das mágoas.
16.10.06
Em seara alheia
Não fomos donos da terra. Nem eu nem o meu pai.
Talvez apenas se quiserdes agricultores de estrelas.
Meu pai enchia um bornal de astros
e só por levar-me pela mão
o trigo crescia a nosso lado.
Construíramos um rio
que corria por dentro da nossa casa.
Era aí que minha mãe
(que tinha olhos de algas)
plantava os nenúfares do silêncio.
Vinham à tarde os pássaros
à eira
debicar as migalhas de alegria
que minha irmã transportava
nos seus passos (serenamente) trémulos.
E então
os três
donos de todos os mundos da terra
e de todas as palavras que fazem crescer os rios
entreolhavamo-nos.
Minha mãe essa
pacientemente semeava
novos nenúfares de silêncio
a dobar tão devagar os gestos
que as mãos esquecidas do seu húmus
adormeciam.
Meu pai morreu antes de termos plantado
os cravos.
Estava magro
não pôde carregar o seu cantil de estrelas.
E para quê pergunto se ia conversar com elas?
Também minha irmã
não soube aguardar o seu quinhão.
A terra estava dura explicaram
a chuva tardara muitos muitos anos
como esperar assim
boa colheita?
Penso que se encontraram no caminho
cansados ambos e sorrindo
meu pai e minha irmã
agricultores de pássaros e astros vos repito.
Imagino-os agora
sentados num almofadão de nuvens
de mãos dadas
tão mansa e serenamente se olhando
que se doem.
Uma broa de silêncio me ficou
por herança de meu pai.
Minha mãe continuou bordando seu enxoval
de longes
entre os nenúfares da casa.
Vieram hoje buscá-la
no primeiro dia deste novo ano.
O rio da nossa casa secou subitamente.
Um nenúfar ou outro amedrontado resiste.
Não fomos donos da terra repito.
Semeámos estrelas até onde nos bastou o sonho
e a coragem
ou até onde as mãos se não cansaram
de alheado pão que nos restou.
Vou amanhã visitar o meu canteiro de cravos.
Adubá-los duma qualquer palavra
dum qualquer sorriso.
Talvez meu pai minha irmã e minha mãe
sejam hoje donos da chuva.
Hugo Santos
Apenas sonho...
ResponderEliminarNa hora magoadíssima do poente
- quase apagada já a luz do dia -
rezava a tua voz tão docemente
que nem o mar, o grande mar ouvia.
Na minha mão, a tua mão ardente;
no meu, o teu olhar que se morria
e o mar a nossos pés em tom crescente
cantando, nem sei que titania.
Depois...sei lá que sucedeu depois!
A mesma chama nos prendeu os dois
e a ambos fustigou, como um açoite.
Nem sei se foi sutil, se foi agreste...
Apenas sei que o beijo que me deste,
foi a primeira estrela dessa noite.
Maria Helena
(Luís Pessoa)lmdpessoa@hotmail.com
Adoro este poema. Alguém me sabe dizer o titulo do livro ao qual ele pertence?
ResponderEliminarRuna
Quais gravatas, quais poderosos,
ResponderEliminarterão o privilégio de ser assim,
(agri)cultores de sonhos e estrelas?Afinal tão reais,
com início caminho e fim. Como objectivo.
Belíssimo desfiar de sentimentos na Seara.
Bj Graça.