23.10.06

Em seara alheia



ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar
o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol

Al Berto

1 comentário:

  1. Al Berto

    Dizem que a paixão o conheceu

    dizem que a paixão o conheceu
    mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
    senta-se no estremecer da noite enumera
    o que lhe sobejou do adolescente rosto
    turvo pela ligeira náusea da velhice

    conhece a solidão de quem permanece acordado
    quase sempre estendido ao lado do sono
    pressente o suave esvoaçar da idade
    ergue-se para o espelho
    que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

    dizem que vive na transparência do sonho
    à beira-mar envelheceu vagarosamente
    sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
    nunhum ofício cantante
    o tenha convencido a permanecer entre os vivos
    LP

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