31.10.06

O improviso de viver

Edouard Boubat



Voltaremos muitas vezes a um jardim de plátanos
com o luar engatilhado nos olhos.
Dir-te-ei nomes de estrelas ao acaso,
como um desvio da fronteira 

desenhada ao redor de nós.
Lado a lado, iremos rever novembro pelas ruas,
devassando vigílias, cantando em surdina
a intimidade de sermos amantes,
neste percurso de pássaros subitamente em fuga.
As árvores são discretas.
Por isso, levar-te-ei para habitares comigo

o improviso de viver.
Estaremos em toda a parte.
Sobrevoaremos os espaços interditos
e seremos a notícia anunciada
pela voz indomável dos que ostentam na boca
a urgência dos beijos e do riso. 

Vem comigo, amor.
No escuro chegaremos à fonte pelo cheiro da sede
e moldaremos na água a transparência 

dos momentos em que a madrugada se comove.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

30.10.06

Em seara alheia


BÁRBAROS

Vinham de longe, arrastados pelos ventos, e escondiam
nas mãos um punhado de areia fina para não esquecerem
o cheiro dos desertos. Subiram à montanha e,
com um ramo quebrado,puseram-se a riscar o contorno
do lago e os caminhos tortuosos das primeiras margens.
A água fascinava-os, como os cavalos que traziam
alados e sem crinas para chegarem sempre mais cedo.

Nessa noite acamparam no vale. Assaram um veado.
Beberam às mulheres que haviam de ter.
E adormeceram mais longe do céu.

Sonharam com o fogo para não terem de cortar o trigo.

De manhã, a planície estava ainda mais plana.

Maria do Rosário Pedreira
In: A casa e o cheiro dos livros. Lisboa: Quetzal, 1996

29.10.06

Esta noite irei de vaga em vaga



Na interior travessia do sentimento
sou o remador.
Deixaram de se ouvir
os sinais de tempestade.
Depois das últimas dunas,
a lentidão das ondas
denuncia um esboço de jangadas
a sulcar a página de cima a baixo.
Esta noite irei, de vaga em vaga,
libertar os peixes prisioneiros
nas sílabas de um sonho privado de barcos.
Peregrinação ou exorcismo
no labirinto dos versos?


Graça Pires
De Labirintos, 1997

26.10.06

Houve um ano

Balthus



Houve um ano em que as andorinhas
se esqueceram de partir.
Comovidos os deuses, adiaram
o começo do inverno.
Nesse ano, uma mulher e um homem
se fundiram em barco feito vento
e partiram sem rumo e sem dar notícias:
como se fora de cinza o nome que usaram.
Agora, nenhum horário retarda o êxodo
das últimas andorinhas em direcção ao sol.

Diz-me, meu amor, onde se cruza
a tua sombra com a minha.
Diz-me em que crónica de espanto
te tornaste o marinheiro
que debandou de encontro
ao deslumbramento das manhãs.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

25.10.06

Bem me disse a minha mãe

Jacques-Henry Lartigue

Bem me disse a minha mãe:um barco, minha filha,
um barco preso ao cais
torna perceptível que o mar
impõe as suas regras.

Sem condições de sobrevivência,
peguei nos remos disposta a decifrar as águas,
sem registar tempestades nem receios.
Naufraguei e salvei-me
e soube que a quietude
dói tanto como qualquer cansaço
e que há palavras que podem matar um sonho,
ou redimi-lo ou, tão só, manchar de sal
a nitidez de um previsto silêncio.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

24.10.06

O corpo

Edward Weston

Tu disseste : o teu corpo é um rio.
Então, acendemos, na margem esquerda,
uma enorme fogueira onde, extasiados,
aquecemos o coração.
Depois, largámos a nau a todo o pano
e fomos ilha: a circum-navegação que nos bastava.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

23.10.06

Em seara alheia



ÚLTIMA CARTA DE VAN GOGH A THÉO

nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar
o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe contra mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada
por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol

Al Berto

22.10.06

No encalço do poema

Ansel Adams

Atravessar a lenga-lenga de um discurso perverso,
com legendas de protesto marcadas na testa.
Desarticular a engrenagem do futuro,
com um pé de rosmaninho
preso ao passaporte da evasão.
No encalço do poema
acendemos, de boca em boca, uma fogueira.
Dir-se-ia ser a palavra o cordão umbilical
que põe em uníssono as mãos e os gestos,
rumo à urgência de um tempo de absolvição.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

20.10.06

O rio

Norbert Rosing




Onde estivermos, a madrugada
será íntima de veleiros
que transportam a voz do rio,
contemporânea de todos os silêncios.
Porém, não acredites na excessiva
vertigem da corrente.
Tanto azul, só pode ser a cor
dos pássaros marinhos,
improvisando a foz, tão devagar,
que o mar se agita rente aos ventos.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

19.10.06

Não presto contas a ninguém


Peter Wileman



Não presto contas a ninguém. As frases, já velhas,
suspendem intrigas de circunstância. Com algas
plantadas à cintura para equivocar os navios,
assinalo no mapa o lugar onde o sol, ao nascer,
torna visível qualquer sinal de ausência. E vou por aí,
ao sabor do vento, com a lua a pique nos sentidos.
Aconteça o que acontecer, amor, protege a minha fuga
com o teu olhar. Um sonho não se toma sem luta.
Sabem-no as tuas mãos inquietas de ternura.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

17.10.06

Quero uma casa com paredes azuis


William G. Hartshorn
Quero uma casa com paredes azuis,
com varandas vidradas sobre a noite.
Um abrigado lugar no eixo do silêncio.
Um espaço intemporal. Sagrado.
Ancorado perto de um signo lunar,
ou preso a um verão inesperado.
Quero dançar dentro das palavras líquidas:
água, rio, mar, lágrimas,
talvez o orvalho que escorre 

pelas árvores de madrugada.
Quero atravessar uma crónica de viagem,
conspirando contra os profetas 

de marés sobressaltadas,
para não morrer sufocada 

na engrenagem do medo.
Quero ficar seduzida de uma espera,
no imaginário dos que sonham
e gritar a idade circular de qualquer afecto.
Quero amar o pretexto branco dos meus olhos,
sem precipitar a cor translúcida das raízes
que prendem a noite à palidez do sol, 

na sedução do amanhecer
e deixar, depois, que um azul 

extenuado me denuncie.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

16.10.06

Em seara alheia


Não fomos donos da terra. Nem eu nem o meu pai.
Talvez apenas se quiserdes agricultores de estrelas.
Meu pai enchia um bornal de astros
e só por levar-me pela mão
o trigo crescia a nosso lado.
Construíramos um rio
que corria por dentro da nossa casa.
Era aí que minha mãe
(que tinha olhos de algas)
plantava os nenúfares do silêncio.
Vinham à tarde os pássaros
à eira
debicar as migalhas de alegria
que minha irmã transportava
nos seus passos (serenamente) trémulos.
E então
os três
donos de todos os mundos da terra
e de todas as palavras que fazem crescer os rios
entreolhavamo-nos.
Minha mãe essa
pacientemente semeava
novos nenúfares de silêncio
a dobar tão devagar os gestos
que as mãos esquecidas do seu húmus
adormeciam.
Meu pai morreu antes de termos plantado
os cravos.
Estava magro
não pôde carregar o seu cantil de estrelas.
E para quê pergunto se ia conversar com elas?
Também minha irmã
não soube aguardar o seu quinhão.
A terra estava dura explicaram
a chuva tardara muitos muitos anos
como esperar assim
boa colheita?
Penso que se encontraram no caminho
cansados ambos e sorrindo
meu pai e minha irmã
agricultores de pássaros e astros vos repito.
Imagino-os agora
sentados num almofadão de nuvens
de mãos dadas
tão mansa e serenamente se olhando
que se doem.
Uma broa de silêncio me ficou
por herança de meu pai.
Minha mãe continuou bordando seu enxoval
de longes
entre os nenúfares da casa.
Vieram hoje buscá-la
no primeiro dia deste novo ano.
O rio da nossa casa secou subitamente.
Um nenúfar ou outro amedrontado resiste.
Não fomos donos da terra repito.
Semeámos estrelas até onde nos bastou o sonho
e a coragem
ou até onde as mãos se não cansaram
de alheado pão que nos restou.
Vou amanhã visitar o meu canteiro de cravos.
Adubá-los duma qualquer palavra
dum qualquer sorriso.
Talvez meu pai minha irmã e minha mãe
sejam hoje donos da chuva.

Hugo Santos

15.10.06

Pelo riso dos lábios

Manuel Alvarez Bravo



Com as precauções a que habituaram suas mãos,
as raparigas tiram os brincos das orelhas
e estendem-se na cama. Depois, é a lua
que lhes enfeita o corpo todo.
E pelo riso dos lábios se adivinha
que há trepadeiras lambendo suas ancas.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

12.10.06

Encontro

Marc Trautmann

No lugar onde a sombra das árvores se cruza
com o vento, vou ao teu encontro, com a estação
das chuvas a pesar-me nas pálpebras.
Se te perguntar o caminho das ondas,
não me contes dos navios que naufragam
sem explicação, nem dos pássaros
que começam a morrer na secura dos lábios.
Diz-me, antes, em que estuário de júbilo
ancoramos o barco.
O luar há-de cercar-nos o corpo.
Nossos dedos, à deriva, desafiarão a lua.
Falarás o que quiseres dentro da minha boca,
até que a madrugada nos sossegue.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

10.10.06

As mãos

Caravaggio


Quando o crepúsculo, quase extinto,
se demora no olhar, há um barco,
fatigado do rumor das vagas,
que se faz lágrima, lambendo
o rosto, sulco a sulco.
É então, que as mãos se identificam
com o coração das aves, de tão inquietas.
Aceitação ou dádiva, afago ou dor, prece ou raiva?


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

9.10.06

Em seara alheia




Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei.


Sophia de Mello Breyner Andresen

8.10.06

Uma ilha adiada no peito

Manuel Fazenda Lourenço


Anoiteceu mais cedo. À porta fechada,
preparo um roteiro de viagens.
Sublinho rotas e derrotas.
Tatuo nos pulsos uma rosa dos ventos
e gravo na mão esquerda um astrolábio.
Tenho uma ilha adiada no peito.
É a época das marés vivas. Pressinto-o,
pela intensa ondulação do meu cabelo,
antecipando a tormenta.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

6.10.06

As mãos, os barcos, o olhar

Edouard Boubat


No verão, os mastros têm o brilho
intenso do sal e da água.
E são como as tuas mãos :
levemente inquietas,
levemente acesas,
levemente inocentes.
Não sei o que procuro nos teus olhos.
Talvez uma pretérita adolescência.
Ou um mar.
Ou um barco feito às ondas.
O que digo pode parecer paradoxal.
Encostada ao passado,
o coração tornou-se-me tão frágil
e, simultaneamente tão cruel.
Mas os teus olhos,
os teus olhos perpetuam nos meus
a claridade das manhãs,
a chegada dos pássaros
e este estranho fascínio de te amar.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

4.10.06

Contracena




Debruçados sobre o vértice mais liso da manhã,
antecipamos a metamorfose do dia.
Temos em nossas mãos
a mesma forma côncava das conchas,
para nelas caber o mar possível,
ou podermos segurar toda a ternura
fermentada nas espigas.
Estranho... o reflexo verde
nos olhos dos homens,
quando as árvores nuas
são, apenas, o perfil da noite
Incógnitos, contracenamos a esperança
consentida no sorriso dos que sonham.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

2.10.06

Em seara alheia


Desarticulação

Brinquedo com enigmas por dentro,
desmancho-me e concentro
a minha angústia sobre cada peça ...
Dão-nos corda e começa
o movimento;
Mas depois é o tormento
de saber
se era tudo a valer
ou fingimento ...


Miguel Torga

1.10.06

Para que nunca mais me reconheçam



Permaneço no lugar em que os relâmpagos
se incendeiam rente à montanha
e deixo que a terra me seduza.
Depois, posso descer o rio, exausta e frágil,
com o corpo embrulhado nas raízes das giestas
e a boca marcada pelo fogo,
como um sinal de alarme,
para que nunca mais me reconheçam.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997