31.3.07

Direi o fascínio

Ticiano


Direi o fascínio que sobrou
do gosto das cerejas
e lembrarei, devagar,
o culto da sedução e dos abraços.
Conta-me, meu amor,
o sabor do pão na tua boca.
Conta-mo com adjectivos
sôfregos
e claros,para que a minha sede
invente o vinho novo, no cântaro
onde a terra ausculta todos os regatos.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

30.3.07

Promessa a insinuar-se na boca

Jean Dieuzaide

É quase verão nos lábios da mulher
que, desordenadamente, respira
no peito da noite.
O cheiro da hortelã
ondula nos seus olhos
e decompõe a erva fresca
nos muros caiados.
A seiva lenta dos frutos, é um esboço
de promessa a insinuar-se na boca.
Por perto, as vozes dos homens,
impedem a proximidade da lua.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

29.3.07

Um dia avistaremos ilhas

Wiliam Hannun

Um dia, avistaremos ilhas de búzios
coloridos que os mapas não referem.
Um arquipélago situado a estibordo do espanto.
De viagem, os crepúsculos incendeiam
todas as crenças : preste joão das índias
que tatuamos por dentro da limpidez
dos sonhos, para coar os desalentos.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

28.3.07

Com sinais de fêmea

Eugene Garin


Com sinais de fêmea no contorno das coxas,
cuidei dos filhos como se fosse mãe solteira
ou me doesse, na alma, aquele desamparo de pai,
que lhes pressentia no sangue e me inibia de chorar.

Esta noite as gaivotas dançaram no meu rosto
uma cantiga de roda. E o silêncio, que envelhecera
nos meus dedos, formulou tempestades sobre as ondas.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

27.3.07

Posso imaginar o teu regresso


Dentro das minhas mãos é, agora, madrugada.
Corto o pulso ao poema. Invento a rima.
Dou à paixão uma forma feminina.
A morna intriga do tempo paira
sobre os meus passos. E contorno,
nos lábios, palavras tão lentas
como veleiros presos ao silêncio.
É pela noite, quando as madressilvas
adejam, perfumadas, sobre emboscados
silêncios, que posso imaginar o teu regresso.
Trarás contigo o ritual do prazer,
exilado nos teus passos.
Já te aceno deste longe, ou deste sonho,
com o mesmo lenço branco do passado.
Não tragas sombras, te direi, enquanto procuro,
nos teus olhos, a lembrança de dias festivos.
Talvez uma súplica.
Talvez um aviso.
Talvez, tão só, um desejo
de luz ancorado em meu olhar.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

26.3.07

Em seara alheia



ANTES QUE SEJA TARDE

Amigo,
tu que choras uma angústia qualquer
e falas de coisas mansas como o luar
e paradas
como as águas de um lago adormecido,
acorda!
Deixa de vez
as margens do regato solitário
onde te miras
como se fosses a tua namorada.
Abandona o jardim sem flores
desse país inventado
onde tu és o único habitante.
Deixa os desejos sem rumo
de barco ao deus-dará
e esse ar de renúncia
às coisas do mundo.
Acorda, amigo,
liberta-te dessa paz podre de milagre
que existe
apenas na tua imaginação.
Abre os olhos e olha
abre os braços e luta!
Amigo,
antes da morte vir
nasce de vez para a vida.

Manuel da Fonseca
In Poemas completos. Forja, 1975

25.3.07

O brilho das estevas

Manuel Fazenda Lourenço


Em ocasionais manhãs de vento sul,
prendo as mãos às giestas,
para que o meu olhar não corrompa
o brilho das estevas.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

22.3.07

De mãos erguidas




De mãos erguidas
junto das nascentes,
convoco o inacessível
e construo os cenários
da infância que não tive.
Agora vou ser livre
de percorrer o vento
em linha recta,
de receber os afagos
às mãos cheias,
de pintar em todas as paredes
as bonecas de trapos que não fiz.
Agora posso marcar
um percurso feliz
no caminho que leva
à outra margem,
ou fabricar um enredo
onde a minha imagem,
petrificada e bela,
seja sempre o reflexo
do crepúsculo que se extingue.
Depois, a vida há-de mover-se
como um vendaval inesperado,
mas nada toldará a limpidez
das lágrimas e da noite,
no ritual quotidiano de estar só.


Graça Pires
De Poemas, 1990

21.3.07

Um alibi de fonemas

Van Gogh

Aqui, onde o silêncio se confunde com a noite,
não me interroguem sobre questões vocabulares.
Possuo um alibi de fonemas, preso à língua,
desde criança. A minha linguagem reivindica
a passagem de papagaios de papel, no olhar
encantado dos meninos e reclama a primavera
em todos os rostos cativos da tristeza.
Há uma gíria de nómadas, entrelaçada no mastro
de um veleiro que, eternamente, singra no meu peito.
Nenhuma insónia me paira sobre os olhos.
Um verão, inclinado sobre o corpo, incendeia
de luas, as sombras que me rondam as mãos.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

20.3.07

Poetas nos chamamos


Repartimos as palavras boca a boca,
como se fossem cerejas cor de vinho.
As letras têm asas, têm ritos,
têm lençóis de linho, têm mágoas.
Urdem idiomas e caminhos.
Organizam protestos.
Tecem raivas.
Traduzem tanta esperança,
mas tão pouca.
Repartimos as palavras boca a boca,
com metáforas de fogo e de lonjura.
Extravasamos o verso e o reverso da ternura,
com expressões que a gramática não diz.
Ser feliz é a nossa porta aberta da procura,
nos lugares interditos,
na boca rebelde dos vadios.
Bordamos os enredos com os fios
que o luar nos prendeu em cada mão
de forma louca.
Somos a luta e a canção.
Repartimos as palavras boca a boca.


Graça Pires

19.3.07

Em seara alheia


Contacto

Eu chamo-te e tu não me ouves.
Estarás atrás daquela estrela, disfarçado,
ou oculto numa nebulosa
à espera da palavra que te resgate?
Eu chamo-te e tu talvez me oiças
mas não possas responder-me
porque o vazio da noite não permite
a partilha de sons e de afectos
a uma tão grande distância.
Às vezes bastava-me olhar para o céu
para ter a certeza de que observavas
todos os meus gestos, todos os meus passos.
Era como se as nuvens guardassem
um sorriso teu no seu bojo de ventos e de chuvas.
Adormecia tranquilo no agasalho dessa crença.
Guardo numa gaveta da escrivaninha
a tua carteira, os óculos, o lenço
que usavas no dia em que partiste.
E já lá vão tantos, tantos anos.
De repente dei pela falta dos teus telefonemas,
das perguntas inquietas que me controlavam
as horas e as errâncias. Tinhas medo,
um medo terrível de me perder,
e afinal fui eu que te perdi. Dizem que foi
a vontade de Deus. E agora eu chamo-te
e tu já não me ouves. Ou será que ouves
e que a pequena estrela pálida, trémula, esquiva
que me ilumina a manhã é apenas
uma forma de o céu escrever a palavra Pai?

José Jorge Letria
In O Livro Branco da Melancolia. Lisboa: Quetzal, 2001

18.3.07

Saíram barcos do meu peito

Salvador Dali


De um instante para o outro,
saíram barcos do meu peito,
à procura do mar da minha infância:
o sangue paterno agitando o coração.
Acumulo imagens sobre imagens.
Entrecruzo palavras antigas.
Um imenso arco-íris humedece-me
o rosto de cores garridas.
Aves costeiras, nascem-me na boca,
como se uma tempestade ardesse,
imensa, em minha língua.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

17.3.07

Antes que chegasses

John Gutmann

Antes que chegasses, encostei ao coração
a memória imaginada do teu rosto.
E comecei a amar-te quando disseste,
em segredo, quanta neve caiu sobre o teu peito.

Agora tudo será indelével nas palavras que me dizes.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

16.3.07

De hoje em diante



De hoje em diante,
porei na mesa um ramo de violetas,
como presságio de amor
e usarei, à volta do pescoço,
um coalhado lume,
até sentir em carne viva
o nervo das mais afectuosas palavras.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

15.3.07

Com estigmas da infância

Gary Faye


Com estigmas da infância no interior das mãos,
teço, na voz, uma fuga permanente.
Posso improvisar cantigas de embalar
os medos e fabricar um idioma ilícito,
para denunciar a violenta cor da solidão.
Não. Não ficarei presa a litorais sem qualquer aceno.
Há pátrias onde as mãos se tornam perfil de pássaros,
definindo o fraterno voo do silêncio.
É esse o meu rumo, rente a um lugar
conivente com as manhãs que redimem
as noites sem afecto.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

14.3.07

O enigma dos lírios anilados

Vincent van Gogh
Às vezes é preciso morrer,
entrar no vácuo do tempo
em declive paralelo com a avidez da vida.
É preciso desarticular o medo,
transgredir os sonhos,
desdobrar a alegria sobre a mesa.
E, seja qual for o enigma dos lírios anilados,
haverá sempre a génese de um jardim,
no lençol onde as raparigas se escondem
para chorar o primeiro amor agonizado,
desenhando, nos cabelos, as madeixas
de uma respiração em sangue.
A meia luz, que permite um duelo
de anjos sonolentos esperará, lentamente,
um brilho incorruptível.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

13.3.07

Mudo as regras do jogo

Clarence J. Laughlin

Mudo as regras do jogo sem prevenir ninguém.
Mordo o freio de rotinas antigas :
armadilha de hábitos
a retardar o acesso a um universo mágico,
onde a alegria comove
como um instante da meninice.
Sem medos. Sem presságios.
O negativo do meu rosto outonal,
com a cor das uvas maduras
no contexto da memória.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

12.3.07

Em seara alheia


Voamos a lua,
menstruadas

Os homens gritam:
- são as bruxas

As mulheres pensam:
- são os anjos

As crianças dizem:
- são as fadas

Maria Teresa Horta
In Os Anjos. Litexa Portugal, 1983

11.3.07

Sem destino visível



As ruas estão apinhadas de gente,
em cujos passos se adiam amores extraviados.
O cair da noite não elimina
o som inquietante da cidade:
com vozes de trevas e de luz,
com pessoas em sensual desalinho,
sem destino visível.
Estranhamente, ninguém repara
no seu andar indefeso e na inegável melancolia
que ostentam no olhar.
No horizonte, um íntimo clamor de pássaros de luz,
traz-me à ideia lembranças imperfeitas.
Um cansaço antigo e desapiedado
recupera, nos meus olhos, a mesma sombra
onde escondi todos os medos.

Graça Pires
De Reino da lua,2002

8.3.07

Apesar de tudo. Apesar de nada

Duncan Clark

No primeiro luar de outono,
alterei o penteado e risquei,
em todos os mapas do mundo,
caminhos interiores.
O mais comum dos peregrinos
cruzou comigo o olhar vadio,
como quem partilha a água e a sede,
o pão e a raiva, a fome e o sangue.

Num lugar de mágoas e cansaços
te encontrei, companheira de sonhos.
Gastaste as mãos nos ardis da entrega
e percorreste os trilhos da coragem,
resgatando a noite.
Às vezes, murmurámos, entre nós,
coisas do silêncio, denunciadas pelo olhar
e dissemos: não há mais nada a fazer senão amar.
Apesar de tudo. Apesar de nada.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

7.3.07

Mulher

Scotia Luhrs

De coragem vesti a solidão,
de ternura moldei o meu cansaço
e fui mulher-canção, mulher-abraço
de quem me viu morrer por cada sonho,
de quem me viu nascer em cada esperança.
Na lembrança guardei toda a beleza
e a tristeza cobri de fantasia.
Enfeitei-me de poesia como quem reza
e fui vadia, no gosto aventureiro de quem vive.
E sou mulher-certeza, mulher-livre,
mulher do dia a dia a tempo inteiro.


Graça Pires

6.3.07

Um amigo

Jacques-Henry Lartigue


O teu rosto é uma cidade
onde os ventos se cruzam
com as notícias sem itinerário.
Decorei o teu nome,
mesmo sabendo que vagueias,
sem rumo, como um nómada,
à míngua de um perfeito amor.
Na cor dos meus olhos te pressinto,
como se, na tua boca, nascesse um rio
sem contornos e, nesse espaço
transparente, me apetecesse ser barco.
Eram feitas de pássaros, as bandeiras
que erguemos no cimo da nossa ansiedade.
Lembras-te?


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

5.3.07

Em seara alheia



UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos vigora ainda o
mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O’Neill

In: Poesias Completas, 1951/1986
Lisboa, IN-CM

4.3.07

Sulco sonhos antigos

Picasso

Um bando de aves solares,
estilhaça os espelhos
que me devolvem uma nudez perversa.
E sulco sonhos antigos, como quem recupera
brincadeiras clandestinas, ou revela segredos
só perceptíveis na noite.
Em que tear ensaio os acenos

que se atrevem no vértice da distância ?
Há um instinto de errância na cor
entardecida de meus olhos,

tão cheios de barcos de ausência.

Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

2.3.07

Atravesso a noite na curva das dunas

LensEnvy
Não é fácil esquecer as praias
em que se desdobram cenas de algas e navios.
Em qualquer parte da suspeita
há uma ilha encantada com castelos de areia,
um litoral de silêncios para além das metáforas,
uma insónia entreaberta a todos os mares.
Atravesso a noite na curva das dunas.
Amanhã, o cais será o coração dos homens,
e as pedras perguntarão por que motivo
é mais soluçado o bater das ondas.
Então, celebrarei a brevidade
do êxtase que não cabe no poema.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

1.3.07

Vamos falar de poesia


ARTE POÉTICA – II

A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala duma vida real mas sim duma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.
É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.
E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.


Sophia de Mello Breyner Andresen
In: Geografia, Lisboa: Salamandra, 1990