29.1.08

Do lado da manhã

Rabi Khan


Do lado da manhã revi o mar,
trazido no olhar de quem partia.

Erectos, os mastros, desnorteiam
as gaivotas que ostentam uma âncora
pintada nas penas.
Um perigoso vento marítimo
inclina-se sobre a noite caiando, de negro,
a deriva dos búzios.
Os barcos ancorados nos meus braços,
impedem-me de abraçar o mar.
O voo impreciso dos veleiros
torna errante a espuma das conchas.
Mas que mar é este, anterior às dunas,
só conhecido pelos náufragos?


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007


Atenção: há mais poemas meus na voz de José-António Moreira em Sons da Escrita

25.1.08

Um olhar

Menez



Deslaço o nó da garganta
na orla quase obscena da pressa
com que passo pelos outros.
Demoro o olhar nos sonhos alheios
que nunca foram ditos
e, neles reconheço, um por um,
o esboço dos meus.
Posso endereçar um verso
para estancar o sangue nas mãos
fracturadas de tanta ausência.
Posso repetir um nome fraterno
que levede os afectos.
Posso desfraldar, no peito, as tréguas
de uma vida rente à inquietação.
Posso?


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996
Atenção: no blog Sons da Escrita podem ouvir poemas meus num programa feito por José-António Moreira

21.1.08

Chove perto dos olhos

Whilhelm Leisten


Chove perto dos olhos manchados de errância.
Um dilúvio começa ao largo do desespero.
Pensámos que, de noite, a mendicidade
das mãos passava despercebida.
Partilhámos enigmas e abismos,
procurando uma margem, um horizonte,
ou apenas uma sede
tão imediata como as lágrimas.
Porém, a cidade não consente vadios
à porta do futuro.
Por isso nos abrigámos nos indícios
da casa ou do caos.
Hoje não lamentamos a brevidade dos desejos
porque somos personagens
de uma parábola em sangue.

Graça Pires
De Labirintos, 1997

14.1.08

Em seara alheia



Trazíamos ainda nos ouvidos o canto
acre e fausto das cigarras. Vinham com ele,
amarrados, os bois, as noras, os carvalhos,
e a voz rouca do cuco e da poupa, o aroma
poroso dos rododendros. Porque é deles
que falas onde quer que te dispas, e des-
nudes, desprevenido e inteiro. Da moldura
partida e do retrato caído no degrau mais
fundo das escadas. Sim, por mais que
digas, falas sempre das abelhas, do mel
adolescente escorrendo dos favos loucos
da alegria. Da alegria perdida, reencontrada,
perdida entre os escombros e as abjecções
do real, mais falso e verdadeiro que todas
as verdades aprendidas, que todos os
dogmas e doutrinas acumuladas nos
compêndios por onde te ensinaram a
vida.

Albano Martins,
Rodomel rododendro, 1989
In: Assim são as algas. Porto : Campo das Letras, 2000

9.1.08

De noite

Scotia Luhrs




De noite, o silêncio não apaga as imagens
sulcadas no olhar.
Um calamento, pressentido pelas fêmeas,
desnorteia os animais com cio.
Entre sombras, abordam-se segredos litigiosos.
As mulheres escondem, sob a roupa,
a prenhez da terra e sangram
os nós dos dedos no velho loureiro,
outrora plantado para coroar heróis
sem rosto, da estirpe dos homens.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

5.1.08

Palavras



Em horas escolhidas ao acaso
recordo palavras que me trazem
outras palavras, outros sons,
outras sombras;
palavras redondas como os seios
das meninas, em cujos olhos
se anuncia um brilho inquietante;
palavras que resvalam pela fala
e transformam o vulto
incerto das mãos em pássaros
ébrios de fogo, ou explodindo de luz
como se fossem astros;
palavras sangrando na boca,
ou um desvio, tecido às cegas,
para deixar entrar a noite.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

1.1.08

Um pássaro verde

António Dacosta



Como tu dizias,
um só sonho não importa,
quando um pássaro verde
nos nasce no peito
para antecipar a esperança.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997