27.4.08

Lembras-te?

Ruth Burke

Se eu viesse do mar, falaria do vento,
do sol inclinado para o sul,
ou da sombra azulada das gaivotas.
E diria: o teu corpo é um mastro
afundado em minhas águas.
Mas, retenho nas palavras
o lugar da vertigem.
E recordo. E recordando digo:
Foi no princípio do mundo.
De seda se vestiam minhas ancas
De aconchego se tomavam nossas mãos.
Lembras-te?


Graça Pires
De Afectos: amor, 2008

23.4.08

LIBERDADE

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo


25 de Abril de 1974

Sophia



Conquista

Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.

Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!

Miguel Torga

20.4.08

Refaço a espera

Degas

Veio, devagar, um pássaro
sobrevoar minhas mãos
tão adiadas das tuas.
Refaço a espera.
Digo o teu nome para que voltes.
Foi secreto e breve o nosso encontro.
Nenhum registo o mencionou.
Vieste, lembro,
como quem vem por uma noite:
ansioso e clandestino
Esqueci já o lugar.
Não o brilho dos teus olhos.
Uma sensata loucura
me tornou cúmplice
dessa paixão quase marginal.
Nunca se viu uma história
onde se ache um cavaleiro andante
sem amores
, disseste,
como quem justifica
o paradoxo de um amor assim.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

14.4.08

Convite




Gostava que estivessem presentes
todas as minhas amigas e todos os meus amigos.


Como se fosse a véspera de morrer,
segurei na boca o mais primitivo
silêncio e pus-me em fuga.
Com as mãos cativas
de um amor antigo
toquei, demoradamente,
todas as árvores
que tinham gravadas no tronco
indeléveis palavras: chorou aqui
Dom Quixote ausências de Dulcineia
.
Então risquei, na pedra,
para que se visse,
um enorme moinho de vento.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

10.4.08

Em seara alheia



Busco em cada estrela o fogo capaz
de acalentar os meus olhos mais antigos.
Foi sempre a fome, companheira peregrina,
que me impeliu a seguir os roteiros da lua,
as ondas dos Oceanos, os acordes desse
sopro indelével: a vida. Fiz da solidão minha
nudez mais pura, o meu pão, a minha sede,
e da ausência a ressecar-me os olhos,
os caminhos todos do mundo. Renasço
no fulgor de cada estrela e, no fogo,
desfaço as cinzas do meu ser minguante:
fagulha a incandescer-me no universo inteiro.


Alexandre Bonafim
In: A outra margem do tempo. São Paulo, 2008

5.4.08

Alentejo

Manuel Fazenda Lourenço

Quando as estevas entraram no poema,
souberam, os nossos filhos, que a brancura
das casas se mantém, eternamente, no olhar
de quem se comove com a luz de cada madrugada.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

1.4.08

A melancolia deste instante

Edouard Boubat


Sinto, poro a poro, a alucinação
vegetal da terra, tecendo os seixos
cativos do orvalho, ou lambendo os mastros
por onde passa o vento norte.
Sei que, as mãos férteis das nascentes,
derramam, entre as pedras, um mel diluído,
na secreta explosão da haste dos salgueiros.
Deixem-me dizer palavras sem sentido,
até esquecer o nome,
pelo qual regressei ao tempo das seduções.
Nenhum culto me absolve do detalhe
em que comecei a preparar
a melancolia deste instante?

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997