30.6.08

Em seara alheia

QUE FORMALISMO?

De lamber as palavras como se
rasas de silêncio elas fingissem
e não se trucidassem contra o vento
e não voassem fundo
e não ferissem?

De afagar as palavras como se
um aguçado arame não
nos arranhasse
e não despisse em nós
a veste que se cola,
a casca da aparência?

De alisar as palavras como se
não fosse duro e fundo
o solo de onde partiram
e o lancinante grito
que lá mora?

É sempre um homem que
por elas fala,
é sempre um coração
que aí adeja!

João Rui de Sousa
In: Quarteto para as próximas chuvas. Lisboa: Dom Quixote, 2008

26.6.08

É um verso

Claude Monet


É um verso, toda a luz filtrada pelo olhar,
quando me surge, das mãos, um barco desvairado.
Vozes longínquas me interrogam sobre a tinta
azul impressa nos meus dedos: são os mares
da Odisseia a inundar-me a garganta ;
são citações de Homero oscilando
em meus lábios; são, não sei que aves
marinhas, no estuário das mãos.
Como quem usa a luz para esconder as sombras.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

22.6.08

Memórias de Dulcineia II

Daniel Garber
Ninguém imagina
por quantos lugares
a noite me encontrou
em retirada.
Comecei a ler romances de cavalaria
para não temer o peso da saudade
que se me alojava na alma.
Prendi à cintura o cheiro
do feno e da alfazema
e deixei que as minhas ancas
tomassem a forma dos moinhos,
para que o vento se inquietasse
com a minha sombra.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

18.6.08

Ganho asas

Yousuf Karsh

Quase tudo é previsível.
O dilema total é escapar
do calendário dos profetas.
Solto-me. Ganho asas.
Estou no século dos abismos,
mas não quero outra idade.
Interpreto todas as parábolas
para encontrar um pormenor
que sancione a minha biografia.
Habituo-me à ideia do jardim
abandonado nas pálpebras
de fisionomias ao acaso.
Um fio de água emoldura
a sombra de Ícaro,
para que permaneça intacta
na memória do sol.
Tão súbito um estribilho de aves no meu riso.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

14.6.08

A hora propícia

Picasso

Esta noite, do lado mais encoberto do rio,
acercarei o meu corpo do teu.
A hora é propícia à perturbação dos olhos,
disponíveis para a luxúria.
Basta que a lua respire a via láctea
em nosso hálito e que as estrelas
povoem de luz o céu da nossa boca,
para que nada silencie a erótica festa
do meu riso acostado à tua língua.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

9.6.08

Memórias de Dulcineia I

André Kertész


Era tanto o alvoroço dos pássaros
nas árvores mais antigas,
que uma inquieta suspeita
se me ajustou ao coração.
Então tive a certeza que morreste.
Só agora descubro
que esteve ao meu alcance
a tua errância,
a viagem que julguei absurda
e sem destino,
o exílio que abrigavas
dentro do olhar.
Da tua, da minha pátria
te direi: tão ausente de alento,
tão ausente de sonhos.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

6.6.08

Os dias de Junho

Robert Doisneau


Neste lugar, onde as giestas
derramam o mel junto aos caminhos,
medimos os dias de junho
pelo exacto despertar do horizonte,
quando os homens se levantam
para soltar o gado
e, por dentro dos seus olhos,
a lua se esconde, perturbada.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

2.6.08

O mar



Sem hora marcada,
os navios passam ao largo das ondas.
Nenhum mar existe sem a silhueta dos mastros,
para chorar os peixes verdes em extinção.
De tão ausentes, as naus esqueceram
o orgasmo das marés
e permanecem, exaustas,
na memória das conchas.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996