30.9.11

Tango

Pedro Alvarez


Coloco sobre o corpo um vestido vermelho
com peitilho de renda e digo tango.
O duelo das pernas: corças descomandadas
no ventre das chamas.
Repito tango.
O bandoneón de Astor Piazzola deixando na carne,
em desalinho, os gemidos da posse.
Ai, os lençóis do estio no suor da febre!
Ai, o mastro mais alto exasperando as águas!
Volto a dizer tango como quem esgota
o vinho novo na euforia da sede.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

23.9.11

Outono

Ana Pires

Alheia à continuidade das manhãs
fixo um encontro comigo
para a hora em que a terra se deixa amar sem cólera.
Tudo converge no sombreado das árvores
chorando as folhas.
Sento-me na esplanada dos prodígios
e abro um bloco pautado
para fixar a voz daqueles que ninguém ouve.
Ao mesmo tempo, apanho do chão
as memórias desta cidade
onde todos os sinais de vida
se conjugam com o verbo esperar
e todos os odores são uma mistura de fumo,
de fadiga, de suor e de solidão.
Tudo se passa, simultaneamente,
como uma despedida e um reencontro.


Graça Pires
De Outono:lugar frágil,1994

16.9.11

Ortografia do olhar

Salvador Dali

Os barcos aproximam-se do quotidiano,
pelos atalhos da luz, no corpo da tarde.
Ao mesmo tempo, de cidade em cidade,
uma inquietante treva incendeia, noite adentro,
o ruído mitológico das maresias de outono.
Um navegante sem bússola

enforca-se no cais dos percursos para sul,
como se rastejasse a paisagem dos sonhos,
pelo lado mais escarpado da alma.
Ritual de sangue inadiável.
Rotas afogadas nas pálpebras.
Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices,
reassumindo não sei que espanto,
enconchando o coração para nele caber
o estremecimento intacto de um rio.
A brisa, de feição, justificará o lentíssimo
tumulto dos remos junto à foz.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

Minhas Amigas e meus Amigos, faz hoje 5 anos que iniciei o meu blogue "Ortografia do olhar" exactamente assim: com esta imagem e este poema. Fiz muitas amizades e a todos agradeço o carinho que me demonstraram.
Não vou fechar o blogue. Continuarei a publicar os poemas, mas por falta de tempo fecharei a caixa de comentários, pois não acho justo não poder responder às vossas agradáveis mensagens. Espero que continuem a ser meus leitores e meus amigos. Se eu puder ser útil a alguém o meu endereço electrónico é o seguinte:
gracampires@hotmail.com

8.9.11

Em seara alheia





no princípio, somos esta luz queimada de água a água,


o fogo ininterrupto que se alastra na comunhão das margens,
a maré vazia, a mágoa calcinada, a imagem breve da castidade,
trabalhada pela pluma do céu com seu botão de rosa sobre o mar.
no princípio , estamos sóbrios, ignoramos o abismo caminhamos nus,
e se uma música nos toca, encostamos toda a nossa vida um ao outro,
e a luz faz, no chão onde dançamos, as efémeras sombras de uma chama,
que, de hoje para sempre, arderá no mundo à nossa passagem. e temos à
nossa espera, no fim de tudo isto, o medo com os nossos olhos na cara, e,
entre eles, a mesma água que queimou este poema, mas abaixo os braços leves,
convidativos, apetece cair nestes braços e concluir, num só corpo o verbo amar.

Alice Macedo Campos
In: a mulher sus.pensa. Porto. edita-Me,  2011