24.6.12

Antes do homem havia a terra


Antes do homem havia a terra:
geografia mágica, sagrada
que,  na luz e na treva, explodiu
de espanto e guardou, milenarmente,
os mistérios da vida e da morte.
Depois da terra veio o homem.
E o homem tornou-se um morador incauto
e perdeu o paraíso onde agora os deuses,
quando passam, desviam o olhar.

Graça Pires
De: Uma vara de medir o sol, 2012

17.6.12

A cor convicta do poente



Quando a aurora começa a dissipar
as trevas  na palidez da terra
avançamos com a argúcia da palavra
sobre a imperfeição de cada instante.
Seguramos a lança das memórias.
Seus véus de renda deciframos.
Por sua farpa ateada as aceitamos.
A luxúria de seus gritos consentimos.
Para que nos seja assombro
a cor convicta do poente.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

10.6.12

Quase lágrimas

 Walker Evans

O viajante ajoelhou-se sobre a terra
e cantou e cantando rezou.
Carregava nos ombros o afluente de um rio
para o largar no longo chão das lavouras.
O pão ázimo lhe sufocava a fome.
A chuva lhe esquecia a sede.
Seu coração emudecia quando um denso 
nevoeiro (quase lágrimas) lhe gravava na boca
o clamor dos glaciares desmoronados.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

3.6.12

Enquanto abrigas nas mãos

István kerekes



Toco-te. Percorro-te.
Os dedos subitamente peregrinos
tangendo a matriz sensual da tua pele.
A pérgula das buganvílias de carmim
encobrindo a sombra mínima dos meus olhos
quando, a meia voz,
me falas do chamamento do corpo.
A navalha das palavras brilhando-te nos dentes
enquanto abrigas nas mãos a limpidez acesa
de teu rio nascente para ecoar
em minha fonte, em minha boca.

Graça Pires
De A Incidência da luz, 2011