30.8.12

Por dentro da memória


Katia Chausheva
 
 
                                    
                                       Para a minha Amiga Luísa Henriques
Incendiaste tudo por dentro da memória
e na esteira do navio achaste o teu chão.
Corpo água. Corpo algas. Corpo sal.
Por dentro da memória o fogo
ainda arde na margem das marés.
Afundas o rumor dos sonhos
no gozo quente da praia.
Corpo fogo. Corpo areia. Corpo concha.
 
Graça Pires, 2012

26.8.12

A incidência da luz



Sei que junto a um cais as pedras são cúmplices
de remotas solidões no coração das âncoras.
Os mapas mais primitivos
e as recentes cartas de navegar não assinalam
a incidência da luz sobre as areias.
Talvez o vento tão íntimo das dunas
saiba onde se escondem os vultos
dos marinheiros quando os barcos
começam a afundar-se nos seus olhos.
Talvez os gemidos do remo estilhaçado
nos punhos sejam a adaga sangrenta
 hasteada em cemitérios
onde se escutam os sinos a rebate.
Talvez os aromas das violetas e dos círios
se misturem com a terra quando as anémonas
começam a despontar nos jardins
perfumando as mãos de pétalas e de fenos.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

19.8.12

Como um aviso


Pedro Pires

Quando as espigas surgiram de repente
nos sulcos das searas, sem que o braço e a foice
afagassem o trigo, houve homens
que se amarraram à terra aguardando que o corpo
se transformasse em campo lavrado.
Houve mulheres que cegaram, em plena
madrugada, perto dos pomares.
Houve meninos que se fecharam por dentro
dos segredos que as mães guardam no sangue.
Houve pássaros que suspenderam o voo
sobre as casas desertas. Como um aviso.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

12.8.12

Talvez o aroma dos lilases



Talvez este país deixe ver mais do que a sujidade
pegada aos prédios ou a agitação das pessoas
que regressam apressadas dos lugares
onde a intimidade as perturba
atravessando todas  as ruas
com o passo vacilante de quem foge.
Talvez a profusão aromática dos lilases
coloque em nosso olhar a sugestão de lugares
onde o vento procura as conchas
ou os barcos enterrados nas dunas,
alagando o recato da noite a quem conhece
o implacável desvio do sossego nas casas
expostas à solidão urbana.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

6.8.12

Em busca do bojador



 Para a Graça Neto, minha amiga de sempre

Os remos adormecem-te nas mãos, cansada
que estás de tanto remares sem destino certo.
Como se fora a única viagem,
contornas todas as falésias,
viajas de dia e de noite
em busca do bojador dos múltiplos desafios.
A tua errância tem perigos excessivos.
Mas não recuas. Pintas, todos os dias,
o casco do teu barco de outra cor.
E pensas: se eu morrer hão-de dizer de mim
que fui o marinheiro que perdeu as graças do mar.

Graça Pires