28.9.12

Por meu olhar de sede e mel

Cristin Atria



Hoje improviso a atmosfera dourada
de um pátio andaluz onde o brilho das lajes
esconde os cristais do choro e me lembram
as cartas de amor amarelecidas,
cujas palavras ainda adivinho pelo cheiro.
Por meu olhar de sede e mel resvalam os astros
que me tecem as feições em golpes inquietos.
Sujo com areia os cantos da boca
para aguardar o retorno das aves
com asas de ventania que hão-de chegar
no fim das grandes tempestades,
trazendo promessas de areais cativos das dunas.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

21.9.12

Já há amoras




Vem, meu amor.
Não tarda aí o fim do dia
e ainda não plantámos as avencas
junto do ribeiro para que o rosto
da terra resplandeça nos prados.
Repara: já há amoras no muro de pedra
onde prendemos as raízes da sede.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

14.9.12

Aguardamos uma luz

Brancusi


Aguardamos uma luz de seiva
que reacenda a treva que nos cega.
Uma luz que não fira a brancura dos muros
nem as sombras dos alpendres
onde plantámos as giestas bravas.
Uma luz que devolva à terra
a farta lembrança das nascentes.
Uma luz para ficar como herança
quando as aves da morte se afastarem
para sempre deste caos
que, assustadoramente, nos acusa.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

6.9.12

O instante em que as sombras dançam


Maria Clarinda


Monótonos se tornam os gestos com que refaço,
grão a grão, o celeiro dos dias, mil vezes ardilosos,
na arca onde se guarda o pão
sem a pressa da fome em ávidas bocas.
Pela janela iluminada vê-se a jarra das mimosas
e o lenço colorido preso à haste do candeeiro.
É o instante em que as sombras dançam
em redor da noite perseguindo as mínimas variações
da luz no amarelo excessivo dos malmequeres
e nas asas das borboletas presas nas traves do tecto.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011