30.1.17

As laranjas


As laranjas,
vergando as árvores de tanto sumo,
fizeram-me sede.
Colho-as com os dentes propícios
à abundância de um soro cristalino
que alague a minha língua,
ávida da mais esperada seiva.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

23.1.17

Pátria

Manuel Fazenda Lourenço

No lugar onde outrora um grupo de nómadas 
percorreu todo o litoral até se colar às rochas 
em melancólicos contornos 
fica a pátria inquieta que nos habita 
como um sobressalto a ocidente do destino.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

16.1.17

Esta solidão de janeiro


Pertence-nos agora esta solidão de janeiro
colada ao teu silêncio, mãe
Guardamos no olhar a transparência dos teus olhos,
a mitigar a fragilidade do nosso magoado coração.
Entreteceste em nós todos os gestos do amor.
Nunca indecisos. Nunca minguados. Nunca interrompidos.
Sentimos que são as tuas mãos que amparam
as sombras que nos seguem.

Graça Pires
Janeiro 2017

À memória da minha mãe que nos deixou em Janeiro de 2010.

9.1.17

Em seara alheia


Acordo
e caminho na erva ainda tenra, húmida,
deixando pequenas marcas dos pés
cansados de caminhar no leito da noite.

Sinto a alma dos muros,
o canto dos ramos das árvores
e fico vazia de medos
longe das coisas redundantes
sem vida e sem cor.

Encontro rasgada a minha saia,
presa que ficou no bico de uma rocha;
levo-a à boca, salgada como as noites
tão etéreas e marinhas de Sophia.

Vem-me à memória que ainda
se demore a manhã no horizonte.
Dela chega-me este ar apetecido
a pousar na minha pele,
suave como um bando de aves.

Lília Tavares
In: evocação da águas. Desenhos de Carmo Pólvora. Porto: Seda Publicações, 2015, p. 55

2.1.17

A intimidade de uma súplica

Laura Makabresku

Às vezes a grafia é escassa
no desadorno do poema.
Ponho no rebordo dos dentes
uma ferocidade
que estremece qualquer culpa.
Uma farpa que deixa na pele
o rasgão da cólera delineado
em monólogos emudecidos.
E abro, à liturgia da música,
a incisão do peito
para forjar no coração a nocturnidade
melódica de chopin, derramando
das teclas a intimidade de uma súplica.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015