19.12.22

Natal e não dezembro

 

Ana Pires Livramento

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio, 
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio, 
porque esta noite chama-se dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça, 
talvez seja Natal e não dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira 
In: Cancioneiro de Natal, 1971

Quem desejar ouvir o poema com a voz e a música do Pedro e ver o vídeo da Ana pode fazê-lo aqui:
                     https://youtu.be/0uskE-5TLeo 


Que venham os anjos que nos guardam refazer em nossas mãos um presépio de amor.

Que celebrem em nosso olhar o desejo da luz, a promessa da paz, a certeza do bem-estar.

Um Bom Natal e um Novo Ano Melhor!


Volto em  janeiro 


12.12.22

Interação Fraterna de Natal 2022

 A convite da Amiga Rosélia Bezerra aqui deixo a minha participação nesta fraterna interação de Natal.





Todos os anos esperamos por ti, Menino do Presépio. 
Estremecidamente. Sempre em dezembro. 
Sempre tão perto do coração. 
Vem, neste Natal, fazer-nos companhia 
e traz no teu olhar a inocência 
que todos tivemos no olhar
quando éramos crianças e te esperávamos.
Estremecidamente. Sempre em dezembro. 
Sempre tão perto do coração. 



                                          
Que a Estrela de Natal venha anunciar a PAZ 
em todo o mundo. 
Que a luz da vida habite os nossos corações.
Que o ano 2023 nos traga saúde e amor.


Graça Pires

5.12.22

Assombro-me da paisagem

Hengki Koentjoro


Na lonjura de vozes antigas seguro a luz. 
Assombro-me da paisagem. 
Deixo que as palavras cedam inteiramente 
ao indizível subterrâneo da paixão. 
Com um alarido preso à boca, leio os poetas 
das palavras claras e quebro 
no interior das pálpebras 
os versos mais cúmplices. 
Semelhante a um primitivo nómada, 
guardo comigo o fogo da poesia, 
para que nunca se extinga 
e me seja confissão e esconderijo. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 52

28.11.22

Em seara alheia



Com o meu coração inteiro 

Neste dia de coração com leme 
as marés consomem a esperança dos barcos. 

As mulheres observam, silenciosas 
o rumor urgente do mar. 
Enchem o olhar da luz golpeada dos peixes 
que emergem como quilhas. 
- É tão longo e ouvinte o seu olhar 
a decifrar as ondas. 

O poema fala a voz dos marinheiros 
Reconstrói-se, lágrima a lágrima 
como a noite que lhes segura os ombros. 

Lentamente como se escutassem a voz de um filho
retornam a casa e aconchegam ao corpo 
o voo agitado das gaivotas. 

Luísa Henriques 
Novembro 2022

21.11.22

Neste flagrante momento da memória

Ilya Kisaradov


Agora, neste flagrante momento da memória, 
recordo o teu vestido branco 
estampado de malmequeres. 
O dia abria-se sempre inteiro no teu corpo, 
onde a adolescência ainda breve te concedia 
a leveza das crianças e dos pássaros. 
Sei que é primavera quando os teus cabelos 
esvoaçam no desalinho da lembrança 
e o grito das flores irrompe das árvores 
em que balouçavas com alegria. 
Sei o teu nome porque danças sobre o meu nome. 
Sei onde moras porque o coração estremece 
quando te pressinto. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 16

14.11.22

Quando anoitecia

Francesca Woodman

Quando anoitecia, 
a sombra do corpo roçava 
a imprecisão da rua 
e as pedras entoavam 
seus passos agitados 
pelas esquinas. 
Quase em fuga, 
não reconhecia o seu rosto, 
atenta que ficava ao ranger 
das portas que se abriam. 
Por entre a multidão, 
ela suspendia nos cabelos 
o percurso da lua cheia. 
Por isso os morcegos 
e os homens a seguiam. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.32

Quem desejar ouvir o poema dito pelo Pedro pode fazê-lo aqui:

                                                            https://youtu.be/4CNAZjY_Y-Y

7.11.22

Memórias de Isadora XXI




Tenho na lembrança um dia frio 
 na costa azul de frança. 

Recordo o uivo dos cães, o cantar dos melros, 
o quebranto que me tolhia os dedos, 
 as folhas do outono terrivelmente belas. 

Meus olhos procuravam e achavam 
uma fatalidade qualquer. 
Como uma premonição, 
um acto sacrificial, 
um chão movediço. 

Pelas sombras possuída 
procurava o inacabado gesto 
de aprisionar a luz em meu olhar, 
quando cobri meus ombros 
com o xaile vermelho 
para enfeitar a vida, 
agora em mim tão extenuada. 

Os sons que se ouviam eram de um tempo 
 nunca mais lembrado, nunca mais esquecido. 

Os cavalos, gritando, vieram no seu trote. 
De meu brilho se tomaram. 
Cavalgaram as ruínas do meu peito 
e meu silêncio sustiveram na garganta. 
O coração, tão breve, ficou suspenso 
por uma névoa que, num instante, se dissipou. 

Devagar bailando. 
Devagar morrendo. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 53-54

31.10.22

Em seara alheia




VII 

A infância, 
um bouquet de colmeias no peito 
e o sangue desenhado por Miró. 

Alberto Pereira 
In: Ecocardiodrama. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2022, p. 33


24.10.22

Quando a chuva se anuncia



Quando a chuva se anuncia intransigente, 
já não há andorinhas esvoaçando pelas casas 
nem se distinguem as dunas 
onde me deitei no mês das uvas. 
Na raiz de cada árvore começa a germinar 
a sede inicial agasalhada pela terra, 
em respiração lenta. 
As janelas fechadas provocam uma singular estreiteza, 
uma impressão vacilante nas mãos instáveis 
dos meninos e dos homens. 
Só as mulheres possuem a conivência das águas. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 35

17.10.22

Tempos houve em que pintava

Christine Ellger

Tempos houve em que pintava
com obsessão, paisagens amarelas. 
Folheando a sua revista favorita 
leu que uma estranha doença 
atingira todos os girassóis. 
Sentiu-se culpado. 
Quando voltou a pintar 
escolheu a cor negra.
Um esbatimento de luz 
anunciou a interdição do brilho 
em seu olhar, para sempre incerto. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 15

10.10.22

Memórias de Isadora XX




Experimentei, tantas vezes, 
o inesperado aroma 
das árvores da infância e a humidade 
do nevoeiro a entranhar-se-me nos ossos. 

Nos sabores, que à boca concedi, 
interroguei os mares, iludi distâncias 
e sobre o tempo saltei sem dar por isso. 
Indefesa me senti dos incontáveis 
artifícios da idade. 

Sobre mim se estreitava, eu pressentia, 
uma morte inescapável. 

Por capricho dos deuses 
nada é perene, nada sobrevive 
à implacável raiz que a terra exige. 
Nada resiste às leis que a própria vida impõe. 

Recolhida na resguardada luz 
dos poentes convergia e afastava 
as sombras como uma prece. 

Pelas concavidades da noite 
ouvia tocar os sinos da igreja 
e era como se um veneno me alagasse inteira.

Graça Pires
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p.52

3.10.22

Em seara alheia




[A Palavra] 

Dizem que a palavra morre 
Quando é dita 
Num qualquer dia. 

Eu digo que a palavra 
Só começa a viver 
Nesse dia. 

Emily Dickinson 
In: Versos traídos: antologia de poesia traduzida por Carlos Campos. Lisboa: Edição de autor, 2022, p. 41

26.9.22

No outono

Magdalena Russocka 

Um punhal certeiro como um aviso 
atinge o dia tombado 
sobre o melindre das folhas no outono. 
Na duração das noites, há árvores estéreis 
que naufragam com a chuva 
e deixam um alagado eco sobre a terra. 
A água escorre entre o alinhamento regular 
das oliveiras que aguardam o frio 
nos lugares onde a paisagem 
é um campo sem lavoura, 
sem searas, sem celeiros. 
Lugares onde se recolhem as formigas 
e a nostalgia das sementes. 
Lugares onde os beirais ficam vazios 
e, na cintura das mulheres, 
se quebram as lanças da paixão. 
Sinto em mim a ressonância calada da terra. 
Capto os sons do vento abraçando 
as árvores como um queixume. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 46

19.9.22

Uma tempestade no peito

aykut ydogdu

Emigro de mim. 
Nunca ignoro a geometria de agitadas águas 
visível nos seixos mais incertos, 
quando uso um pretexto de fuga 
para percorrer os mares abertos, 
costeiros, ligados à terra. 
Uma tempestade inusitada no peito 
decifra a cor indefinida das marcas digitais 
dos que tacteiam a estranheza dos barcos 
com nomes de mareantes 
impressos com sal e sangue. 
Aves marinhas cantam-me nos lábios 
estranhos sinais. 
Risco então em cartas geográficas 
o delírio dos mastros pressentido 
na minha voz navegante. 
Fixo-me às tábuas com nós de marinheiro 
e a carga do navio tem o peso do meu corpo. 
Depois de eu morrer haverá o rumor do meu olhar 
luzente sobre o mar mais intranquilo. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 43

12.9.22

Fala-me da tua infância

Cristina García Rodero

Fala-me da tua infância 
para que eu possa procurar a minha. 
Onde está o berço, a cambraia, 
a saliva na teia dos dedos? 
Diz-me, conta-me os lugares 
e os jogos da tua meninez. 
Quais as brincadeiras, 
os heróis, as teimas? 
Deixa-me partilhar contigo 
o cume da montanha 
onde te escondias, sem ruído, 
nos detalhes do horizonte. 
Permite que o manancial de teus olhos 
se derrame nos meus olhos, 
para que os dias não cubram de secura 
a memória da água. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 29

5.9.22

Em seara alheia



Não consigo explicar a poesia. Ela é água para a nossa sede. 
Ela agarra o céu e o mar. Ela nasce em mim como uma fonte, 
cujo caudal tenho de trabalhar. É um ofício de água. 
É um maravilhamento total. Não sei mais nada. 

Maria Teresa Dias Furtado 
In: Ofício da água. Lisboa: Poética, 2022, p. 27

29.8.22

Queria em seus dedos


Maria Kaimaki


Queria, em seus dedos, um contexto rebelde. 
Procurou a cicatriz dos dias, o risco da vida 
e da morte, o choro dos filhos nas horas aflitas. 
Com a perícia das unhas arranhou os poros da pele 
para não temer o suor nos sulcos da lembrança 
quando espalhasse no peito o sal líquido 
onde encalharam as barcas da paixão. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 47

De quiserem ouvir o Pedro podem fazê-lo aqui:
                                                    

                                            https://youtu.be/xUWL-vmi49w

22.8.22

Por onde caminha Antígona

Ilya Kisaradov

Traço, neste texto, uma linha utópica 
por onde caminha antígona com o olhar orvalhado, 
confrontada com a tradição sagrada e a lei, 
com o amor e o ódio. 
Pronta a morrer por acreditar 
na justeza do seu gesto. 
Deixo-a passar, conflitual e pura, 
numa tragicidade instintiva, sublime, quase mística. 
Personificação de um lúcido desespero. 
Deixo-a passar como uma sombra branca 
onde as minhas mãos difusamente se perdem 
e se encontram, para urdirem uma dualidade fraternal 
e cúmplice que se consome no meu peito. 
Um pretexto mítico arrasta-me para o coro trágico: 
o homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente
Mas recuo, desarticulando da minha voz reticente todas as contendas. 
Não sigo antígona. Interiorizo apenas a inquietante aflição 
e a desmesura de um conflito tão tremendo, tão sacrificial. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021. p. 57

25.7.22

A graciosidade da juventude

Ana Pires Livramento


Uma vacilante clareza assume 
o exacto perfil da idade na passagem dos dias. 
Há resíduos enigmáticos na vertente 
dos sonhos esquivos 
quando uma saia a esvoaçar 
se pode transfigurar em linguagem sensual 
e a presilha de um sapato 
tem a graciosidade da juventude. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.16

Se desejarem ouvir-me no poema, ver o vídeo da Ana, escutar a música do Pedro podem fazê-lo aqui:

                                 https://youtu.be/iNh3PVoU8Fc                                           
                        


Minhas Amigas e meus Amigos, vou fazer uma pausa. Voltarei a 22 de Agosto. Desejo que passem uns dias tranquilos, com saúde, paz e conforto.

Beijinhos.

18.7.22

Em seara alheia



18. 

Um homem dorme nas arestas do frio, 
os ossos apoiados na lembrança 
de um verão abrasador. 
Eis o sono do homem 
que percorreu os mares e regressou. 
Nos olhos o esplendor da verdura das ilhas. 
As mão em leque na explicação das aves. 
Parava em Maio a ouvir o eco 
dos trovões pelas esferas. 
Sentou-se amarrotado 
nos degraus cor de cinza da pobreza. 
Era quando cantava 
com a voz doente do remorso. 
Cansou-se da viagem 
e abandonou o mar 
e demandou o porto. 
Chorou ao tactear o gume da cidade. 
Ensurdeceu, que a música era grito. 
Guardou no bolso a aspereza do dia. 
Adormeceu obedecendo à noite. 
Sonhou que era um navio e navegava. 
Sem avistar a costa, navegava. 

Licínia Quitério 
In: A decadência das falésias. Lisboa: Poética, 2022, p. 26

11.7.22

Memórias de Isadora XIX



O meu tempo vivi. 
Tive amigos. 
Eram actores, músicos, 
bailarinos, boémios. 
Escreviam o meu nome 
nos jornais e em cartazes. 

Em berlim chamavam-me deusa. 
Na grécia quis ser ninfa, calipso, 
nausícaa, ou mesmo ulisses. 
No egipto deixei que o deserto 
e o vale dos mortos me fascinassem. 

Por todos os lugares conheci 
o esmorecimento ou a ânsia da perfeição. 

Como contar aqui todos os tropeços, 
todos os despojos, todas as solidões? 

Teimei incansavelmente na mais cúmplice 
presença do silêncio. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 42

4.7.22

Esboço a demora do amor

Magdalena Russocka

Em contrição febril, penitente, 
esboço a demora do amor e concebo 
um gozo preso nas frestas das portas, 
tão próximo dos meus contornos de fêmea. 
Agora não quero profanar a tábua de salvação 
que me transformou a vida com argumentos 
enlaçados no sangue do meu sangue. 
Foi quase possível acreditar no amor 
sem contradição alguma. 
Um desígnio iluminado renegou em mim 
o achamento da treva, o desalinho do pensamento. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 24

27.6.22

Interioridade

Ana Pires Livramento



Aqui estou, cercada de mim, 
melancolia trazida 
do interior de um bosque, 
silhueta a preto e branco 
na figuração de um pássaro em voo lento. 

Há quanto tempo, 
só eu sei quanto, 
as amarras de um barco 
se quebraram, 
no interior frágil 
do instante em que fui vento,
ou apenas um abandono breve, 
como as mãos no acto de dar. 

No ângulo do grito e da língua 
se explica a leveza das lágrimas, 
circunfluência no interior das pálpebras, 
longínquo lago na cintura dos lábios. 

Cheguei ao lugar onde se cruzam 
todos os ventos sem hálito 
e chamo pelo nome os frutos e a fome, 
para que ninguém se comprometa 
ao tocar nos meus ombros.

Graça Pires
De Poemas, 1990, p. 43

Este poema faz parte do meu primeiro livro "Poemas" que, no dia 29 de Junho, faz 32 anos que foi editado.

20.6.22

Em seara alheia



Pés 

Leio as tuas palavras numa cidade 
estranha e cheira-me subitamente a 
pão e a casa. Ter-te comigo é como 

poder andar descalça pelo mundo. 

Maria do Rosário Pedreira 
In: O meu corpo humano. Lisboa: Quetzal, 2022, p. 82

13.6.22

Escrevo água



Tremem-me os dedos ao separar retratos antigos, 
ao anotar os nomes, ao deixar que cada rosto 
se insinue no meu âmago, 
nos degraus de uma interminável espera. 
Escrevo água para alagar o útero maternal 
e distingo ao longe a minha sombra, 
com o coração inclinado sobre o meu ventre 
duplamente fecundado. 
Um abraço é o íntimo afago em que me reconheço. 
O embalo consentido na plenitude do desejo 
que ao corpo apetece e a alma confirma. 
A perturbação presente na memória 
como um horizonte 
para sempre visível na bênção das mães. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 36

6.6.22

O culto mais privado dos sonhos

Katia Chausheva

E o culto mais privado dos sonhos 
rasga o véu que me cobre 
quando um contido silêncio 
é uma lâmina de frieza 
a magoar-me a pele. 
Em vão me escondo no lado oco 
das paredes para não ver as areias do tempo 
deslizando, apressadamente, 
sobre a pétala que esvoaça na neblina 
como um aceno da vida ou pairando 
sobre as manhãs em que os pássaros 
perdem o sentido do voo. 
Há um delta de fogo a esboçar um triângulo 
em meu perfil, secretamente seduzido 
com pormenores sagrados. 
Por isso afirmo: corre um braço de rio 
entre os seios das mulheres 
que guardam no ventre a fertilidade da terra.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p, 13

30.5.22

Roubava ameixas no quintal do vizinho

Vincenzo Balocchi

Roubava ameixas no quintal do vizinho
Em volta das árvores, 
o som dos seus passos 
apressados metia-lhe medo. 
Quando fugia era mais veloz 
do que os pássaros 
que lhe abafavam a fuga. 
Então partilhava com eles 
o suco espesso da fruta 
e escondia nas penas das aves 
um desprevenido regozijo. 
“Um dia hei-de encher as algibeiras 
 mais largas que tiver”, pensou. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.13

23.5.22

Em que naufrágio me salvei

António Costa Pinheiro

Um cristal onde me espreito 
devolve-me a minha imagem: 
sudário desatado ao vento 
como um veleiro a todo o nó, 
resgatando viagens  
e despojos da ilha há tanto tempo 
adiada no meu peito. 
Em que naufrágio me salvei com gestos imprecisos? 
Na minha boca, um mar interior 
inunda as dunas mais distantes 
preferidas pelo vento, 
com areias em clandestinas danças. 
Costuro, com búzios brancos, 
redes de pescadores 
para poder mergulhar o grito das mãos 
fugidas das marés sem fundo, 
agredidas pela luz nocturna. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 42

16.5.22

Em seara alheia




III 

Os abraços 
Os abraços da gente 
            que sabe abraçar 
Os abraços de corpo inteiro 
Abraçar como se fosse acabar o mundo 
            sentir o que os outros sentem 
            o calor de um corpo desabotoado 
A tristeza do abraço falhado 
            do abraço que faltou 
Há quem se abrace a si próprio 
                frente a um espelho muito antigo 
                a auto consolação 
Abraçar o que não vemos 
                mas sentimos 
O que nos chama sem chamar 
O que que nos toca sem tocar 
Dirão que estamos a abraçar o nada
Será 

Jorge C. Ferreira 
In: 60 poemas [mais um].Lisboa: Poética, 2022, p. 13

8.5.22

Memórias de Isadora XVIII

Paul Berger


Como um desígnio aceitei 
a demanda fecundada de meu ventre. 

No cristal mais límpido da existência 
me consenti o sublime anseio de ser mãe. 
E sitiada me atentei desse milagre. 
E seu domínio concedi em meus enleios. 

Os meus filhos. 
Na meiga luz de seus olhos 
me iluminava toda, me purificava. 
Embalava-os como se me acalentasse. 
Com seu choro misturei os meus gemidos. 
Com seu riso renovei todos os pactos 
com alegrias e deleites. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p.41

O meu forte abraço para todas a mães do Brasil, de Portugal e de todo o mundo, principalmente para as que estão em sofrimento e abandono.

1.5.22

No dia da mãe, para os meus filhos com amor

Selfie tirada por Pedro Pires

Vem de tão longe, meus filhos. 
Vem do começo sagrado dos tempos 
e do silêncio dos dias ao acaso, 
a grandeza de cada gesto. 
É preciso ter asas e deixar 
que o fascínio vos conduza 
até ao infinito, onde a avidez da vida 
inaugure no olhar o prodígio do espanto 
e a pura nascente de todas as sedes. 
Onde haja uma planície festiva 
reinventada em vosso rosto 
enaltecendo o amor. 
Onde continuem intactos os íntimos 
pretextos que o coração concede. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 36

Se gostarem de ouvir o poema podem fazê-lo aqui:

                                                                https://youtu.be/5rtWvkY0tAo