Seleccionar o ângulo de um rosto, sem lhe macular a luz, como se, a meia voz, pudéssemos reter os múltiplos reflexos do júbilo e das mágoas.
29.5.16
Em seara alheia
Quando os rios secarem
Quando os rios secarem e as tempestades
Forem sopro e bálsamo sobre a gretada pele
E a mácula se erguer em flor de inocência
E os olhos magoados forem poema e bailado
E um sorriso límpido enfeitar as linhas do rosto
Como cinzel de límpidas palavras.
E o silêncio se abrir e a música for
Som de cristal. Dedos em movimento subtil
Na vibração da noite. E todos os enganos forem
Festivo encontro...
Inventarei então todos os nomes e
Deporei a pura essência dos dias peregrinos
Em que enlaço e colho o deslumbramento
Como dádiva, transgressão e fonte
Em que ardendo me digo...
Manuel Veiga
In: Do esplendor das coisas possíveis. Macedo de Cavaleiros: Poética, 2016, p. 27
22.5.16
A escrita não se fatiga das palavras
Para
o Poeta João Rui de Sousa
Quando
o dia oferece à paisagem
todas
as gradações da luz,
a
escrita não se fatiga das palavras.
O
poeta é então um artífice discreto
pressentindo
no olhar, sem explicação,
o
manejo das mãos enfeitiçadas
pelo
gesto acabado, a marginar um sonho.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
16.5.16
Ato aos tornozelos o voo das aves
Katia Chausheva
Pela
respiração do mundo
sei
que a vida me cerca
com
mãos inesgotáveis.
Possuo
um deserto na garganta
e a
essência dos cardos
em
antigas sedes.
E
corro o perigo de ser
a
combustão das fontes,
ou
a vertigem de um brado,
ou
o som indeciso da mudez,
quando
ato aos tornozelos
o
voo das aves para que as pernas
sejam
colunas de santuário
onde
os pés descalços não têm ruído,
nem
rasto, nem forma.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
9.5.16
Em seara alheia
Renasço-te em cada aurora,
nas manhãs voláteis carregadas de abrunhos maduros
das árvores perdidas em searas sem dono.
Preciso de ti,
do silêncio dos teus olhos nas manhãs solidárias
cheias de flores por ti amadurecidas.
Teresa Durães
In: Passos sem rasto. Lisboa; Chiado Editora, 2016, p. 33