5.3.07

Em seara alheia



UM ADEUS PORTUGUÊS

Nos teus olhos altamente perigosos vigora ainda o
mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.

Alexandre O’Neill

In: Poesias Completas, 1951/1986
Lisboa, IN-CM

5 comentários:

  1. Um dos mais bonitos Poemas de O’Neill, ou antes, um dos que mais gosto. Foi bom (re)lê-lo.
    Grata por o partilhares.

    Um abraço e boa semana ;)

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  2. "Há palavras que nos beijam
    Como se tivessem boca,
    Palavras de amor, de esperança,
    De imenso amor, de esperança louca.

    Palavras nuas que beijas
    Quando a noite perde o rosto,
    Palavras que se recusam
    Aos muros do teu desgosto.

    De repente coloridas
    Entre palavras sem cor,
    Esperadas, inesperadas
    Como a poesia ou o amor.

    (O nome de quem se ama
    Letra a letra revelado
    No mármore distraído,
    No papel abandonado)

    Palavras que nos transportam
    Aonde a noite é mais forte,
    Ao silêncio dos amantes
    Abraçados contra a morte."

    (Poema de Alexandre O’Neill)

    ... que aqui deixo com um grande abraço ;)

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  3. Obrigada Menina Marota pelo comentário e pelo poema. O O'Neill é, de facto o extraordinário poeta que vale sempre a pena recordar. "Um adeus português" é um dos poemas que mais gosto também. Boa semana também para ti e um abraço.

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  4. Gaivota

    Se uma gaivota viesse
    trazer-me o céu de Lisboa
    no desenho que fizesse,
    nesse céu onde o olhar
    é uma asa que não voa,
    esmorece e cai no mar.

    Que perfeito coração
    no meu peito bateria,
    meu amor na tua mão,
    nessa mão onde cabia
    perfeito o meu coração.

    Se um português marinheiro,
    dos sete mares andarilho,
    fosse quem sabe o primeiro
    a contar-me o que inventasse,
    se um olhar de novo brilho
    no meu olhar se enlaçasse.

    Que perfeito coração
    no meu peito bateria,
    meu amor na tua mão,
    nessa mão onde cabia
    perfeito o meu coração.

    Se ao dizer adeus à vida
    as aves todas do céu,
    me dessem na despedida
    o teu olhar derradeiro,
    esse olhar que era só teu,
    amor que foste o primeiro.

    Que perfeito coração
    morreria no meu peito morreria,
    meu amor na tua mão,
    nessa mão onde perfeito
    bateu o meu coração.

    Alexandre O'Neill
    (LP)

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  5. Obrigada Luís Pessoa. O poema é incrivelmente belo. Todos o conhecemos cantado por Carlos do Carmo ou pela Amália. Um abraço.

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