29.10.07

Volto à caligrafia da sede

Cartier-Bresson


O outono entra-me pela casa.
Ao longo das paredes sublinho a minha cronologia,
num gráfico de sílabas, susceptível à tristeza.
Neste momento, avalio mal o equívoco do silêncio
frente à disponibilidade das palavras.
Acerto os livros pela lombada e vejo,
nas estantes, as sombras de poetas românticos,
com um imenso rio na expressão dos olhos.
A privação de rostos, torna violentas todas as cores.
Coloco as palavras sobre a mesa
e volto à caligrafia da sede.
Onde estão os pássaros de olhos aguados,
que sobrevoavam, ainda há pouco, as minhas mãos ?

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

14 comentários:

  1. o outono, na sua melancolia arrastada, na antecipação do entardecer, do silêncio nocturno, pode tornar-se um equívoco realmente (nunca o tinha pensado assim)... mas as palavras estão lá, e as «aves aguadas» também...

    este poema é fantástico, Graça!
    todo ele. mas diria também que os versos
    «Coloco as palavras sobre a mesa
    e volto à caligrafia da sede.
    Onde estão os pássaros de olhos aguados,
    que sobrevoavam, ainda há pouco, as minhas mãos ?»
    poderiam ser um poema por si só!

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  2. Tão díficil de comentar! Destaco apenas - apenas feito de tudo:

    "Neste momento, avalio mal o equívoco do silêncio
    frente à disponibilidade das palavras.
    Acerto os livros pela lombada e vejo,
    nas estantes, as sombras de poetas românticos,
    com um imenso rio na expressão dos olhos.
    A privação de rostos, torna violentas todas as cores.
    Coloco as palavras sobre a mesa
    e volto à caligrafia da sede."

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  3. Os pássaros estarão sempre nos seus olhos e nos seus poemas.
    Saudações!

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  4. Os pásaros estão sempre nos nossos olhos,buscam as palavras em cada migalha...
    Bjs Zita

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  5. Os "pássaros" voaram em direção à «liberdade». Deixaram o azul-prata que crescia no horizonte, empurrado pelas nuvens inquietas do desatino. Talvez, os pássaros, agoram vivam em santuários de desejos infatigáveis de palavras ditas de outra maneira.
    Lento vai ser o seu regresso..pois a memória não se inventa...

    Abraço
    Paulo

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  6. nas tuas mãos a sede parece ser serena...


    pássaro cujo ninho tece a renda dos dias. possíveis.



    um beijo.

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  7. Estão à espera das tuas palavras...

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  8. Nada a fazer, Graça.

    Não são apenas os pássaros que voam. Para onde voei eu, que aqui estou, sem estar?

    Para onde voamos (voámos) nós, guiados pela sede de não sermos a plenitude de que duvidamos sempre?

    Que é feito das nossas penas? De todas elas?

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  9. NãO há palavras para descrever um dOm assim...
    LindO demais..
    Obrigada pOr partilhar...




    sOl*

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  10. Vim deixar-te um beijo,agradecer as palavras certas na hora certa, ler os poemas que fazes com amor e inspiração e dar-te um abraço apertado!

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  11. Maria, obrigada pelas palavras. Talvez tenhas razão quanto à última parte do poema. Tenho alguma tendência para exagerar...

    Gostei dos destaques Helena.

    São e Zita, é bom quando nos visitam e nos dizem coisas assim.

    Obrigada Paulo por estas palavras: Os "pássaros" voaram em direção à «liberdade»...
    Lento vai ser o seu regresso..pois a memória não se inventa...

    Isabel, parece só... A sede nunca é serena, mesmo quando a usamos para fazer o poema.

    Luis, gosto do que disseste.

    Tens razão João Carlos. "Para onde voamos (voámos) nós, guiados pela sede de não sermos a plenitude de que duvidamos sempre?
    As nossas penas? Tentamos redimir-nos do que não somos através da poesia: um lugar de liberdade.

    sOl, que visita tão agradável. Volta sempre.

    Sophiamar, também te agradeço e digo que gosto muito de visitar o teu espaço, mesmo quando não comento.

    Obrigada a todos e um beijo.

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  12. Pergunto-me se este poema se sucede cronologica (e logicamente)ao anterior. Alimento a minha curiosidade, não tem de resoponder :)

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  13. Soledade, este poema tem pelo menos mais dez anos que o anterior. O que quer dizer que as ideias se repetem ou complementam. O facto de se juntarem aqui foi uma coincidência que terá mais a ver com o meu estado de espírito de agora...
    Um beijo e obrigada.

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  14. persitentes os "poetas românticos". e a insaciável sede dos pássaros em vôo picado. sobre a mesa das palavras.

    belo, pois claro.

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