24.11.25

É sempre a sede

 

Silena Lambertini


Deciframos o orvalho
no sequioso fôlego
de quem aguarda
à boca do inverno
um líquido sopro.
É a sede.
É sempre esta sede sem fim
a demandar a nascente perfeita
onde as águas se bebem
demoradamente.


Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2015, p. 41

17.11.25

Inutilmente

 
Laura Makabresku 


Ignoro se alguma nascente

mitigou a sede em minha voz arável

no barro quente da infância

onde todas as falas eram possíveis.

 

Há um espaço vazio

nos pormenores desse passado

rasgado na clareira da memória

onde uma luz impiedosa

emerge de si mesma sem aviso.

 

Agora por mero acaso o procuro.

Inutilmente.


Graça Pires

De O improviso de viver, 2023, p. 18

10.11.25

Uma chama perturbada

 

Georges de La Tour




Uma chama oculta e perturbada
tange as cítaras de água‑viva
que transportam em asas invisíveis
todos os silêncios,
depurando a claridade 
no reflexo das sombras.
Fixo a obliquidade dessa chama,
perturbada e oculta,
à espera de uma promessa,
de um milagre, de um ritual 
que me salve das palavras 
sem significado algum.
Escrevo o meu nome
sobre o martírio de antígona
para não ser punida por deuses
ciosos da minha consciência.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 72

3.11.25

Os crisântemos

        
 



Em voz baixa
digo que os crisântemos
crescem no batimento
inquieto do coração
E são delicados
como a cambraia bordada
por mulheres caladas
que carregam no sangue
misturas insubmissas
de vida e de morte.

Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2025, p.10