28.9.06

Quero que me abraces

Rodin

Quero que me abraces,
antes que a tristeza envelheça no meu peito.
Com o tempo, habituei-me
à conivência das palavras
e a usar, com inocência, certos gestos.
A tua sombra é-me familiar.
Sou espectador do teu sorriso
tão perto da simplicidade.
Quero falar contigo, horas a fio.
Sem pretextos de fuga.
Sem palavras caladas.
Um silêncio definitivo ser-nos-ia fatal.
Mas, depois, partirei,
porque sei que há no meu sangue
uma embarcação possessa
do chamamento do mar, ou da solidão.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

27.9.06

Um olhar

Ansel Adams

Se um dia passares pela nascente de um rio
visita a minha sombra húmida,
indiferente à inquietação das árvores
carregadas da memória do vento.
Pára e inclina sobre ela um olhar tão cúmplice
como quem, com lentíssimas mãos,
pressente o apelo dos lábios
.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

25.9.06

Poema de amor

Rodin


Era cruel atravessar aquele tempo, onde faltava a tua voz.
Houve, porém, uma noite em que disseste: meu amor
e o coração alvoroçou-se-me no peito.
Foram as minhas primeiras núpcias, 

soube-o mais tarde,
quando o começo do outono deixou 

um lume aceso nos meus olhos
e uma imensa clareira fez ecoar no meu hálito, 

não só o teu riso,
mas, ainda, uma antiga inocência 

que trazias sobre os ombros.
Da noite, perdi o sentido das margens, 

porque parti, sem norte,
à procura da época dos duelos por amor.
Hoje, teço no teu peito, indizíveis naufrágios: 

não para morrer,
mas para ser salva de pretéritas e futuras solidões.

De Reino da lua, 2002

21.9.06

Outono

Cezanne



Não sabemos que fruto se pressente na boca,
confirmando um tempo de colheita.
Urgente se torna refazer o frágil
caminho das manhãs: um trajecto de água
nas pupilas dos pássaros, conquistando planícies,
fontes, lábios. Umas vezes vento, outras vezes barco,
mas sempre coniventes com a ilusão que se maneja
como um desvio para escapar à morte.
Setembro escreve-se a cor de mel,
quando a luz quase emerge da terra
e os dias, mais curtos, garantem que o sol
se reconcilie com a noite.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

16.9.06

Ortografia do olhar


Salvador Dali


Os barcos aproximam-se do quotidiano,
pelos atalhos da luz, no corpo da tarde.
Ao mesmo tempo, de cidade em cidade,
uma inquietante treva incendeia, noite adentro,
o ruído mitológico das maresias de outono.
Um navegante, sem bússola,
enforca-se no cais dos percursos para sul,
como se rastejasse a paisagem dos sonhos,
pelo lado mais escarpado da alma.
Ritual de sangue inadiável.
Rotas afogadas nas pálpebras.
Quilha de silêncio onde ficamos exilados e cúmplices,
reassumindo não sei que espanto,
enconchando o coração para nele caber
o estremecimento intacto de um rio.
A brisa, de feição, justificará o lentíssimo
tumulto dos remos junto à foz.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996