27.1.20

Como um cerco de presságios


Van Gogh

Vem do rio um vento interminável, como um cerco
de presságios que nos gela nos ombros.
As cobras enroscam-se nas pedras,
sobressaltadas com a agitação da terra.
As abelhas escondem-se no regato das chuvas
esperando que as colmeias as procurem.
O chão arde em nossos passos, vítimas
e culpados do desvario dos caminhos.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 57

20.1.20

A ondulação intensa nos meus olhos

Andrey Vahrushew 
     

                                                                     À minha mãe com amor, in memoriam


Tenho um caule de sangue
espetado na garganta
e os dedos tremem-me demasiado.
Vestida de negro, repouso
sob a árvore mais frondosa
com as nervuras das folhas
a sulcar-me a carne.
A voz declinante do tempo
envolve, imprecisa,
a ondulação intensa nos meus olhos.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p. 44

13.1.20

Em seara alheia


99.

Às vezes a vida é uma mulher
a chegar a casa
depois de um dia de trabalho,
lábios sem cor, despenteada,
sacos de supermercado, 
a roupa em desalinho,
os sapatos na mão,
não, os sapatos nos pés,
não se atreve a tanto, 
a sonhar com descalçar os sapatos.
Uma mulher que
sem acender as luzes da casa,
olhos de gato no escuro, 
pode-se viver nos olhos de um gato, 
abre armários, gavetas, arruma o mundo,
o mundo pode ser um apartamento
com duas assoalhadas e as plantas por regar,
amanhã, amanhã sem falta rega as plantas.
Uma mulher que sem jantar,
lavou os dentes, não lavou a cara,
se enfia numa cama malfeita
puxou as orelhas à cama,
se a mãe visse isto puxava-lhe
as orelhas como se fosse uma cama.
Uma mulher sem ninguém,
a vida é só a vida,
a quem dizer boa noite meu amor.

Raquel Serejo Martins
In: Plantas de interior. Braga: Poética, 2019, p. 149

8.1.20

Nas arestas do instante

Solange Firmino


A correnteza da água
nas margens mais agrestes
mancha de lodo os meus dedos aflitos
com o estremecimento dos búzios.
Contudo, amo o equilíbrio dos cactos
presos às areias. Antevejo neles
a quietude da maresia na véspera
dos vendavais quando, nas arestas
do instante, me fere a ausência de uma ilha.

Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014, p. 44

2.1.20

Zombaria

Cristin Atria


Podem zombar de nós aqueles que não gritam nem choram 
nem imploram à vida a fé que já perderam. 
Podem inventar teorias sobre a sorte 
e rezar a um deus qualquer 
como autómatos da fria engrenagem deste tempo. 
Podem ostentar nos dedos os anéis da indiferença 
e usar em pleno peito os adereços inúteis da bondade. 
Podem zombar de nós. 
Trazemos a transgressão perto do sangue 
e um vendaval na voz 
a bradar o sonho desmedido dos poetas.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013, p. 32