28.10.24

Em seara alheia

                             

Camarinhas

Segui-te pelas veredas
para me dares a provar
as bagas brancas do bosque.

Desejava os refúgios silvestres
a caruma a suster-nos os corpos
e a longa distância da civilização
à espera de podermos revelar
as pérolas ocultas
nas nossas bocas.

E na surdina do tacto sabermos
que as coisas mais preciosas
só afloram nos lugares furtivos.

Samuel F. Pimenta
In: Gérmen. Lisboa: Poética, 2024, p. 90

21.10.24

Até quando?

 



Recuam até ao lodo do silêncio.
Sangue engolido devagar.
Escorregadio como algas.
Difuso e seco como o medo.

São palavras sempre sujas
as que lhes agridem o corpo
e lhes laceram a alma.

A fuga é o único recurso
mesmo que o desenredo
seja a solidão ou a morte
tantas vezes inevitável.
Até quando?

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 51

14.10.24

Quando os relâmpagos estremecem a terra

A.E.E.

O movimento nodoso dos dedos 
resvala para uma irremediável timidez 
nesta errância de palavras confidentes. 
Com as mãos vazias, desarmadas, 
em desconforto, em alarme, quase faleço 
perto das trepadeiras presas em estacas 
quando os relâmpagos estremecem a terra em pousio. 
A lua enchente alumia as colmeias 
varridas pelo sobressalto de águas subterrâneas. 
Um escorpião arrasta-se pela margem de todos os sustos. 
Escondo as dores no estreitamento dos dias, 
e aprendo com os bichos a usar as mantas da noite 
porque sinto o sopro dolorido do vento 
a rasgar a intimidade das nuvens. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.47

7.10.24

Em uníssono



Indagamos, em uníssono, 
o avesso dos dias
retalhados por mãos adversas,
para não nos equivocarmos
com o rosto deste mundo
em constante calafrio, em arriscada deriva.
Porque estes são tempos exasperantes
de perder as pátrias e as casas
e os pais e os irmãos e os amigos
e os nomes e a memória.
E nas imensas planícies enegrecidas
é desabrido o som dos que bradam
quando as crianças ensurdecem no silêncio.
A meia-haste, arvoramos a rugosidade
das cinzas e o rasgão do medo,
para não permanecermos alheios
à saturação dos que sangram,
dos que tombam, dos que resistem.

Graça Pires, reeditado