POÉTICA
O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.
Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho - e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma - é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado.
«O futuro do homem é o homem», estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos tão longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração - acção de uma cultura mais interessada em ocultar ao homem o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa «cantar no suplício» é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.
Eugénio de Andrade
In: Poesia e prosa [1940-1986], 3º vol.
O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.
Essa revelação do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho - e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou nas galerias da alma - é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado.
«O futuro do homem é o homem», estamos de acordo. Mas o homem do nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita há milhares de anos, cujas possibilidades estamos tão longe de conhecer, é o fruto de uma desfiguração - acção de uma cultura mais interessada em ocultar ao homem o seu rosto do que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa «cantar no suplício» é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a São João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Po a William Blake, de Bashô a Cavafy, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares e milhares de rostos, todos eles esplendidamente respirando na terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última do sangue, que é também verdade da alma.
Eugénio de Andrade
In: Poesia e prosa [1940-1986], 3º vol.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1987
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