17.6.24

Em seara alheia

    •  

3.

Ninguém sai ileso
de uma claridade prematura.

Este quarto,
insurrecta metáfora
que espreita
a grelha costal do ébano.

O corpo, alambique de harpas taciturnas.
A pele alumiada
pelas habilitações literárias do gume.

Caducou
a biografia de antídotos
que expatriava o limbo.

Ser agora um homem
na potência crucial da bruma.
Arquivo de mitologias nefastas.
Mapa sem alvéolos.
Hora de ponta
no espaço tumoral.

Alberto Pereira
In: Tarkovsky: o sacrifício. Costa da Caparica: The Poets and Dragons Society, 2024, p.68
Prémio Ulysses 2023

10.6.24

Noite

Silena Lambertini 



Em plena noite delineava-se no chão
a luz derramada pela lua.


Era fácil ver as minhas mãos 
propícias a qualquer sobressalto 
no chamamento dos afagos. 
Eu ouvia os meus pensamentos 
como uma suplicação. 

E a perturbação das estrelas em meu olhar 
provocava uma espécie de cegueira 
no canto dos olhos. 

Como se a noite me entrasse pela casa. 

Graça Pies 
De O improviso de viver, 2023, p. 27

3.6.24

O lugar definitivo do silêncio

Magdalena Russocka 

De modo inútil arremesso 
contra um muro de barro 
os pensamentos banais. 
Interrogo-me obsessivamente 
sobre o chão que me espera, 
sobre o pó que afagará 
o corpo que é meu, 
sobre o poder das trevas 
debaixo da terra, 
sobre o rumor dos cemitérios 
quando a lua cheia incide 
nas lápides e nas cruzes de pedra. 
A morte. Eco perpetuado 
em passos rigorosamente 
lentos e apressados. 
Farpa suspensa sobre o coração 
como um estigma. 
Lugar ausente de luz 
onde se cai sem aviso 
nem tempo nem idade. 
O lugar definitivo do silêncio. 
O derradeiro gesto
 a servir de limite ao perfil do rosto. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.74