29.7.24

A ociosa lentidão dos sentidos

 

Michael Bilotta 



Retomo pedaços de uma narrativa
em que me reconheço despida de artifícios. 
Distancio-me dos vícios morfológicos 
sufocando os gemidos do verbo. 
Deixo que me pertença 
a ociosa lentidão dos sentidos. 
Antigas convicções, 
entrecruzadas por conquistas e desastres, 
alastram como uma verdade 
primordial diante de mim, 
fragilizada pela fuga do tempo, 
pela completude da vida.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 79

Minhas Amigas e meus Amigos, vou fazer uma pausa. Voltarei a 26 de Agosto. Desejo que passem uns dias tranquilos, com saúde, paz e conforto.

Beijinhos.


22.7.24

Avistamento

                                            

Anne Packard


No meio do areal
a pulsação da mulher
impelia o veleiro.
 
Em antiquíssima visão
ulisses avistava ítaca.
Sentia o coração de penélope
e o faro do cão
quase exauridos de esperar.
 
Talvez pareça dissonante invocar
homero nesta página.
Come se fosse possível escapar
de um malogro inevitável
ou culpar o primeiro silêncio
pela inabilidade da voz inicial.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 29

15.7.24

Inclino o corpo sobre a terra

Jean-François Millet


Inclino o corpo sobre a terra 
para tocar o milho maduro. 
Tenho um arado impresso nos braços. 
Por isso a minha língua tem um sabor terroso. 
Um vegetal aroma esboça 
folhas de árvores em meus olhos,
íntimos das estações do ano. 
O mais luminoso verde 
invade a paisagem 
e um aceno inesperado fere-me as mãos 
como uma aflição ou um lamento 
de raízes em volta dos punhos. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 48

8.7.24

Em seara alheia

                     


Parecem maçãs rubras, as mães.
Sabem que cumprem o ofício das amoras: 
sangram para o interior. 
Depois de cada filho, compõem lentissimamente
o seu chão ainda incendiado pela vida.
Só existem filhos amados demoradamente
se escutarem o apelo vital
vindo das entranhas do coração.

Lília Tavares
In: Nas mãos a sede dos pássaros. Lisboa: Poética, 2024, p. 9

1.7.24

A imperfeição da luz

 

Manuel Fazenda Lourenço



No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi com um sorriso
deslumbrado e breve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu nome.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 30