28.4.09

Desempregados

Dorothea Lange

Sabem de cor a raiva extenuada
com que se repete: trabalho, pão,
trabalho, pão, trabalho, pão
.
Nos seus olhos já não há, senão, um país
onde se nasce e morre, como quem cumpre
o exílio de uma pátria longínqua;
como quem conhece a orfandade do mundo;
como quem tropeça nas próprias cicatrizes.
Os seus pulsos sangrando de tanto desespero.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

20.4.09

LEMBRAR ABRIL







AS PALAVRAS DO MEU CANTO


Palavras que não morrem. Nunca morrem
se um homem as disser sempre de frente.
Palavras que não morrem. Nunca morrem
porque são a razão de quem as sente.

Palavras. Todas elas do meu povo.
Amigas. Companheiras. Namoradas.
E são o canto antigo. O canto novo
de quem não as quer ver amordaçadas.

Palavras que são vento. E tempestade.
Palavras que são sol. E são abrigo.
Verdade. Amor. Poema. Liberdade.
E a palavra maior: palavra Amigo.

Palavras que são arcos. E são setas.
Com elas se defende uma canção.
As palavras são as armas que os poetas
devem fazer passar de mão em mão.
[ … ]

Joaquim Pessoa
In: Amor combate. Lisboa: Moraes, 1977

13.4.09

Enredos de fim de tarde

Manuel Fazenda Lourenço
À revelia de pretéritas lembranças,
um bafo de terra molhada
devolve-me enredos de fins de tarde
que me sugerem os panos coloridos
com que, em criança, fazia as saias das bonecas.
O verso e o reverso de um concêntrico imaginário.
A atmosfera impregnada do meu fascínio de viver.
E pego na fala de Zaratustra para perguntar:
Que temos de comum com o botão de rosa
que verga sob o peso de uma gota de orvalho?
De que matéria somos feitos
que nos torna comovidos e inocentes
perante a promessa da ternura?
Sei o difícil jogo de viver.
Os meus desejos são como as areias
que o vento levanta sem levar para longe.
Nenhuma linguagem explica o devir das paixões.


Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

6.4.09

Na proa dos barcos


Na proa dos barcos reconhecemos
os ventos tropicais.
Um cais torna-nos marinheiros
de um destino sem remorsos.
Ninguém põe em causa a perfeição
do voo das gaivotas nos corpos dos meninos
que rebolam, pela areia, a inocência do olhar.
Há uma rota, plural de outras rotas,
que pressente naufrágios a poente dos afectos.
Sal que vicia os lábios e magoa
como um punhal de sede.
Braço de água-doce
comprometido com um mar inacessível.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997