30.11.06

Do ponto mais alto da minha infância

Karl Soderlund

Do ponto mais alto da minha infância,
talvez se aviste o mar.
Deve haver um lugar,onde os barcos
se encontram para morrer sobre as quilhas.
Quem disse que nunca chega a anoitecer
nos olhos dos que ostentam um grito de aves
no declíneo das pálpebras ?
Com os pés exilados, guardo, no regaço,
os ventos e as sombras, para amparar as dunas:
tão frágeis à hora do poente.

Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

29.11.06

É irremediável a solidão

Jean Dieuzaide

Vieram de longe. A pé.
Na hora do sol sem sombra.
E ensandeceram à procura da fonte.
Agora vivem em casas de paredes grosseiras
e vestem-se de luto, à espera da morte.
É irremediável a solidão,
costumam murmurar baixinho.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

28.11.06

Como se fosse uma dança

Rodin

Como se fosse uma dança, um movimento de valsa,
tomo de assalto a idade do fascínio e dato, com ela,
a cartografia das noites para sempre adiadas.
Sedenta de outras luas, pinto os lábios de mel
e cola-se-me na boca um manifesto poético:
com gestos indizíveis, com mutismos excêntricos,
como se tivesse entre as unhas uma perversão qualquer,
a corromper a forma imprevista das palavras.
A íntima estratégia do olhar exibe, em meus lábios,
um silencioso desafio. Tenho a luz da manhã enrolada
nos olhos, um cheiro a rosmaninho à beira dos dedos
e um pássaro desvairado por dentro do peito.



Graça Pires
De Reino da lua, 2002

27.11.06

Em seara alheia


O jovem mágico

O jovem mágico das mãos de ouro
que a remar não se cansa muito
e olha muito depressa (como se fosse de moto)
veio hoje ficar a minha casa
Vivia longe longe já se sabia
tão longe que era absurdo querer determinar
metade campo metade luz
aí era a sua casa o sítio onde era longe
mesmo de olhos fechados (como ele estava)
e de braços cruzados (como parecia dormir)
o jovem mágico das mãos de ouro
que era todo de empréstimo à minha noite
que falou por acaso que nem se chamava assim
(segundo também contou) tinha vivido há muito
ele, que estava ali, era um falsário
um fugido de outro basta ver os meus olhos
nada sabemos de nós a não ser que chegámos
sem uma luz a esconder-nos o rosto
belos e apavorados de estranhos casacos vestidos
altos de meter medo às aves de longo curso
nem há noites assim não há encontros
ao longo das enseadas
não há corpos amantes não há luzeiros de astros
sob tanto silêncio tão duradoura treva
e não me fales nunca eu sou surdo eu não te oiço
eu vou nascer feliz numa cidade futura
eu sei atravessar as fronteiras das coisas
olha para as minhas mãos que te pareço agora?
No entanto surgiu como simples criança
conseguia sorrir sentar-se verter águas
com as maõs na cintura livre natural
ele que era um fantasma um fugido de outro
um que nem mesmo se chamava assim
o jovem mágico das mãos de ouro
desaparecido nu de todos os sítios da Terra

Mário Cesariny

25.11.06

Conta-se

Jean Dieuzaide


Falava de barcos e naufrágios,
da luz incerta das cidades,
de mulheres de longos e húmidos cabelos.
Cabia em sua boca a mudez dos outros
e, por isso, lhe escorria dos lábios
um visível silêncio.
O mar fascinava-o tanto como a lua,
ou como o cais onde amarrava o barco,
quando o vento exercitava
o seu modo desavindo de lhe afagar o corpo.
Conta-se que as ondas lhe rebentavam nos olhos
sempre que entristecia.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

24.11.06

Sempre um sonho nos arrasta

Manuel Fazenda Lourenço


Por todas as razões que definem o rumo
do vento, ou o tornam cativo nas velas
de um barco sem destino,
sempre um sonho nos arrasta.
Não, não quero ser salva de previsíveis
transgressões a um código de rotinas impostas.
Sou jovem. Hei-de sobreviver ao meu próprio caos,
antes que a noite seja mágoa no poente

e, por dentro das manhãs,morram os pássaros
sufocados de tristeza.
Hei-de sobreviver, antes que, de boca em boca,
circulem as palavras prisioneiras da ilusão,
ou o rio que me corre nos olhos

esgote o seu caudal em litígio com a nascente.
Hei-de sobreviver, porque existe um outro tempo:
livre, povoado de rostos que antecipam
o percurso da esperança.
Existe, sim, um continente soalheiro,
ao alcance do mais íntimo pressentimento da vida,
onde, em asas de gaivota, nascem os homens

reconciliados com a morte.

Graça Pires
De Reino da lua, 2002

23.11.06

A surpresa de olhar-te

Alvarez Bravo

Tu, que vieste sem eu te procurar, vem comigo.
Se souberes de cor a cor do vento

e quiseres decifrar, nas minhas mãos,
os gestos sem memória, vem comigo.
Como um recado quero explicar-te

por que motivo trago dentro de mim
uma longa praia, às vezes deserta,
outras vezes sufocada de gente.
É em mim que as ondas se quebram
quando o mar, intranquilo,
penetra o sossego das dunas.
É em mim que ecoam os gritos fúnebres
das mulheres, sempre que os barcos não regressam.
É em mim que nascem os lenços brancos do adeus.
É em mim que os búzios ressoam 
os segredos das marés.
É em mim.
Depois, a areia aquece as veias

e a respiração de quem chora amores impossíveis
e o corpo é um sacrário sem liturgia
a renegar o seu próprio destino.
Por isso, a surpresa de olhar-te.
Contigo permanece a alegria do riso,

branco de açucenas e de luar,
como uma festa de nascer.
Mas repara em nós : que brilho é este

que nos brinca nos olhos como se fossem lágrimas?

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

22.11.06

Dia de anos

Matisse


Se os pássaros sobrevoam as palavras
para saudar o dia, é porque há festa
nos olhos de quem nasce quantas vezes é preciso.
Quase se adivinha um tempo de lembranças
como um pretexto, uma fuga, um alibi
para escapar à fadiga dos sonhos minguados.
É então que os amigos trazem afectos
que o tempo não corrompe
e o vento se torna solidário das manhãs
por onde se regressa à infância.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

16.11.06

No lugar da minha sombra

Jon Edwards


Gastei as mãos amarrando barcos à infância.
Agora, no lugar da minha sombra,
cresce uma praia onde as gaivotas
aguardam que o sol
lhes devolva o brilho das pupilas,
ou as cegue para sempre.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

15.11.06

As papoilas secam-me nos olhos


Sem qualquer pudor, deixei a marca,
do meu andar apressado,
em todos os caminhos de esperas decisivas.
Algo envelheceu nos meus pés,
manchados pelo desacerto dos dias.
De tanto percorrer o chão da infância,
as minhas pálpebras encheram-se
da lucidez dos velhos.
Não creio que os dias se revezem,
inevitavelmente, iguais.
As papoilas secam-me nos olhos.
Sinal de sede, ou de um verão antigo
inquietando a boca ?


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

14.11.06

Quero um poema que fale de amor

Brancusi


Na nudez das mãos o poema tarda.
Ébria de um proibido mel recuso
dedilhar, ao acaso, definições simbólicas,
ou românticas entoações, a justificar
o ritmo das palavras. Cativa de outras falas,
rodeio-me de letras perturbadas para dizer paixão.
A semente e a seiva, o parto e a morte,
a montanha e a vertigem,
incendeiam-me os lábios
e fustigam os meus passos em direcção
a todas as madrugadas.
Quero um poema, ainda que imperfeito,
mas que fale de amor.
Que diga o corpo inteiro,
antevendo o júbilo das mãos.
Que diga a boca adjacente à boca,
e os olhos em festa, e a lua
ardendo, atónita, nas veias.
Um poema onde doa a ausência
dos abraços, onde se redima

a mendicidade do olhar.


Graça Pires
De Reino da lua, 2002

13.11.06

Em seara alheia



ORLA MARÍTIMA

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de núvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

Ruy Belo

12.11.06

Uma história quase nossa

Degas




Enquanto me dispo, vão-se os teus olhos cobrindo
de perturbado gozo. Vem. Somos jovens de novo.
Podemos colher os medronhos, ainda molhados
pelo orgasmo da manhã e partilhar, palmo a palmo,
a secreta invenção do musgo.
Podemos transgredir o rio da cintura
e reajustar a nau que aporta sobre a boca.
Vem. Podemos roçar a polpa, lamber o suco,
tactear a raízes do fruto ou da fome.
Podemos arriscar as asas, adiar o voo
e, no vértice dos corpos, fruir a paisagem,
lentamente. Vem.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

11.11.06

Novembro

Edward Raymes


Quando novembro se esconde
no fumo das lareiras,
ou no cheiro das castanhas
acabadas de cozer,
a morte gosta de rondar as casas.
As mulheres, sobressaltadas,
procuram as camisolas de lã,
para que os filhos não tenham medo do escuro.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

9.11.06

Recorto do jornal

Menez

Recorto do jornal uma primavera antiquíssima
e, sobre o vazio, esculpo a notícia do meu nome.
Tenho a idade da menina

que adormece ao som da voz materna.
No meu peito há uma árvore,
onde prendo um baloiço para espiar os ninhos
e entrelaçar, nos cabelos, penas de todas as cores.
Estou só. Tenho valsas rasgadas nos pés
e asas, como línguas, em torno da boca.
Hoje cubro de branco outras sombras.
Entre os meus dedos e a lua

pairam pluviosos olhos.
Começa em mim a emboscada

dos lugares abandonados,
espreitando os amantes traídos.
A minha tristeza pode ser um barco,
ou, apenas, o corpo de um homem

vestido de relâmpagos azuis.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

8.11.06

Enlouquecemos

M.C.Escher
Enlouquecemos.
Acasalamos na pele o azar e a sorte.
A sociedade de consumo manipula-nos.
Tornamo-nos culpados dos equívocos,
da ruína, do nosso próprio envelhecer.
Que leque de ilusões se abre
ao pressentimento sôfrego de qualquer derrota?
Com que bússola se altera o gólgota dos sonhos?
Não existimos para consentir
frases inúteis em torno dos dias.
Com um gume na língua,
excomunguemos os deuses infalíveis
e falsifiquemos o tempo de morrer
dentro das fronteiras da vida!


Graça Pires
De Labirintos, 1997

7.11.06

Um abraço

Rodin

Pelos teus braços sei o ritual do fogo
no corpo apetecendo,
a harmonia das mãos: aprisionado gozo
que percorre e desnuda as veredas
deste quente sentir.
Não repares se me comovo sobre o teu ombro.
Trago comigo o espanto
de ser possível olhar-te sem remorsos.
Diz-me se é um barco
o que vejo nos teus olhos
ou se, apenas, imagino que regressas.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

6.11.06

Em seara alheia



O unicórnio

Ele veio da última
brisa da tarde.
Sua crina de sonho
sua leveza de infinito
pairavam
invisíveis
em plena praça
de domingo.
Nos canteiros
os gerânios sorriram
pombos voaram assustados
árvores festejavam alumbradas.
Tudo era felicidade
ante a visitação
daquela surpresa.
Ele veio do além
dos segundos
de um tempo
enraizado para lá
do próprio tempo.
Ele irrompeu do primeiro
anel de Saturno.
Suas patas de vento
seu dorso de núvem
levitavam
impossíveis
no pleno coração
do domingo.
No coreto
a banda
como nunca
tocou melodiosa sinfonia
balões abriram
suas cores pelo ar
namorados bailavam
plenos de esperança.
Um unicórnio
resplandeceu
súbito
o pleno sentimento
da infância.

Alexandre Bonafim

5.11.06

Hoje acordei conflituosa


Hoje acordei conflituosa.
Provocadora, talvez.
Um lenço de seda (ou uma ave?)
cerca-me o pescoço; reajusta
o decote da blusa ao esboço dos seios;
roça, no contorno dos ombros,
a tatuagem, quase invisível, dos sentidos.
Lá fora, a chuva cai. Tão devagar que faz sede.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

3.11.06

Volto a um lugar gémeo da memória



Volto a um lugar gémeo da memória
e retenho um diálogo a dançar-me nos lábios:
amo-te como no tempo em que o meu corpo
era uma ilha e nenhuma palavra me parecia
intrusa dentro da tua boca.
Amo-te. Vejo na tua face a pátria e o exílio
onde, simultaneamente, me sinto.
Chamo-te a minha fuga,

asas desenhadas no meu riso.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

2.11.06

Por detrás das estrelas procuro um amigo

Manet



Por detrás das estrelas procuro um amigo que morreu.
O seu passado pressagiava a subversão
e tomava o pulso da esperança.
Era poeta.
Na sua vida havia um muro branco,

onde cada um de nós podia escrever o nome.
Será a morte, passo a passo,
esta asfixia de recordações
que me torna deliberadamente comovida?
São astutos os mortos
com quem me cruzo na memória todos os dias.
Talvez sejam magos da vida que debitam,
ciumentos, a lembrança da eternidade,
num amor não correspondido.
Tudo é efémero longe dos retratos
que guardo, ao lado de pétalas secas
em forma de coração.
Numa fenda da paisagem
escondem-se as gaivotas
cansadas do ruído do mar.

As gaivotas e os poetas.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

1.11.06

O nome de Ariadne




O nome de Ariadne,
guardo-o na alma como se fosse meu.
Póstumo. Reticente.
Bordado na seda do meu sangue.
A desinquietar-me o destino,
como se fora o dote que me coube.
Caminho sobre os cílios de Teseu,
adormecido e exausto como um herói vencido.
Creta é tão próxima da ilha onde me perdi
a exorcizar contradições e remorsos.
Minos, o senhor do meu palácio de cristal,
tornou-me cativa de mim própria.


Graça Pires
De Labirintos, 1997