30.4.12

A escassez do amor e do pão de cada dia

Dorothea Lange

                       Desconhecemos as cicatrizes das mãos
que manejaram a mó dos moinhos
e a fadiga das que mondaram a terra,
num ritual repetido infindavelmente.
Nada sabemos das mãos gretadas
pela acidez das resinas e do pó,
pela dureza da enxada e do arado.
Abandonadas há muito tempo,
as alfaias antigas ainda rangem
nas mãos dos que pisam os trilhos
das cabras em lugares desamparados.
São mãos onde se lê a escassez
do amor e do pão de cada dia.
Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

19.4.12

As palavras andam por aí

Sarah Afonso

As palavras penetram o espaço e o tempo.
Amadurecem em papel de seda,
manipulando a cor, ateando o silêncio,
incendiando as cinzas, anunciando a luz.
As palavras andam por aí
como se fosse a vez primeira:
solitariamente manejando a noite.
E desnudam-me. Dançam no meu corpo.
Cobrem-no de malícia.
Tatuam em minha testa o tom das tangerinas
para que o seu sumo me escorra pela cara até à boca.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

12.4.12

A túnica lilás

Sandro Botticelli


A túnica lilás desesperava-se de ser anjo
no meu corpo de criança.
Rasguei-a há muito tempo.
Os anjos não perdoam que lhes cobicem as asas.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

5.4.12

Um requiem pelos sonhos

Manuel Fazenda Lourenço

Refazemos o tempo nocturno no mais escondido olhar
para que ninguém veja os passos em falso
com que trilhamos o destino.
Olhamos o carvão apagado, como se fosse possível
encontrar a noite debaixo da trempe
onde, no tempo antigo, se poisavam as panelas
e se procurava a promessa de um lugar à mesa.

Contra o silêncio lemos a meia voz: ponham laços
de crepe nos pescoços das pombas da cidade.
Que os polícias de trânsito usem luvas pretas
de algodão. Voltamos a ler e as palavras de Auden
ecoam como um requiem pelos sonhos
profanados em mãos funestas.
Depois não sabemos como evitar o luto,
ou a culpa, ou a solidão.

Graça Pires
De A incidência da Luz, 2011