Seleccionar o ângulo de um rosto, sem lhe macular a luz, como se, a meia voz, pudéssemos reter os múltiplos reflexos do júbilo e das mágoas.
29.8.17
Em seara alheia
NO PRINCÍPIO DOS PÁSSAROS
Nunca foi importante
salvar o mundo
construir poemas
com palavras ininteligíveis
saber se és vento
barco relâmpago
mulher incerta
metáfora
escarpa
ou flor de estação
importante é quando passas
corpo de seara
sem magoar os cravos
e dulcíssima te desfolhas
Sempre me apaixonei
por esta desordem de cores
quando passas
não pelos teus passos
mas pela sua leveza
como no princípio dos pássaros
Eufrázio Filipe
In: Chão de Marés: colectânea de poesia 2013-2016. Póvoa de Santa Iria: Lua de Marfim, 2017, p. 105
23.8.17
Distante, o olhar
Katia Chausheva
Distante,
o olhar procura
as
linhas entrelaçadas
no
tempo dos tempos,
no
esquecimento dos dias,
na
raiz de um som primordial,
no
rasto de vidas que se cruzaram.
Com
a boca cheia de silêncios
clamo
o vazio absoluto em minha voz
tão
inacabada, tão sequiosa,
tão
presa à garganta.
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
16.8.17
Qual o significado de um nome
Moises Saman
Qual o significado de um nome
se o nome se faz navio
que regressa sem leme,
desnorteando as mãos dos marinheiros
transfiguradas em remos;
ou o nome se faz terra que nos abre no
colo
uma caverna onde vêm dormir
os bichos assustados;
ou o nome se faz grito que perturba as
searas
e desfolha as flores silvestres
que recolhem o ruído dos passos;
ou o nome se faz forquilha
que fende a voz cativa de emoções?
Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015
8.8.17
Em seara alheia
os meninos colocam barcos de papel
os meninos colocam barcos de papel
a navegar na valeta
e sonham com embarcações a percorrer países
e destinos improváveis de que são os comandantes
as meninas fazem grinaldas com folhas de arbusto
pintam as unhas com pétalas compridas de flores
e fingem que são rainhas
desfolham zangas fugazes e risos
intermitentemente com cores de eternidade
um futuro pouco distante
lhes dará um reino e um trono
em que o tempo será um bicho medonho
a devorar o futuro
e brincar será apenas uma coincidência
a aldeia agora é um fantasma de escombros
com casas que sorriem velhas de amargor e tristeza
porque as telhas estão gastas
e os fornos não dão pão
e os canteiros não têm flores
os risos dos meninos soam distantes
girassóis em busca de luz
a fabricar sonhos em outro lugar
a luta é um incessante caminhar
por uma selva sinuosa e densa
e há correntes onde os homens se agarram
para atingir os píncaros da montanha e tocar o céu
a brincadeira acaba num grito de mãe a dizer
vem jantar
o dia cheira ao suor dos homens
e ao riso distante dos meninos.
Graça Alves
In: Da Timidez dos Homens. Coimbra: Palimage, 2017, p. 38
2.8.17
Jovem morena com franja
Amedeo Modigliani
Não
digam a ninguém,
mas
hoje, lá na loja,
foi
um vai e vem de rapazes
para
me verem de franja.
As
senhoras que foram comprar
meias
de seda, ou um tecido,
ou
uma bugiganga qualquer
olhavam-me
com suspeição.
Percebi
que é falso, quase tudo
o
que aprendi sobre os segredos
das
mulheres que encobrem
a
ansiedade no recamo do decote.
A
sedução é um brilho cegante
e,
quem sabe, um lençol de mágoas.
Intenso
foi o tumulto de aromas
estranhos que a todas nos perturbou.Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017
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