24.9.09

Onde o outono aquece

Ana Pires


Aqui, na fenda da rotina onde o outono aquece
vou desenhar a sede, lentamente.
Já não falo de nós, peregrinos

das rotas que inventámos.
Por dentro das metáforas violo,

apenas, os limites do sossego e desfaço
todos os nós do medo no fulgor livre do verbo.
É morno o gesto com que percorro

os momentos inquietantes do quotidiano.
Imagens e sons são, quase sempre,

o fundo falso onde, de forma ambígua,
me escondo para representar todos os rituais,
sagrados e profanos, do dia a dia.
Aquém de mim acendem-se todos os mares

e, na voz dos marinheiros, pergunto ao sol
se pode ser eterna a sombra de um barco.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

18.9.09

Um silêncio obsessivo

Marthe


Há um deserto adiado no interior
das papoilas desdobradas
sobre o movimento dos dedos.
Aqui é a passagem
para um silêncio obsessivo.

Graça Pires
De Poemas, 1990

10.9.09

Memórias de Dulcineia XVI

António Quadros

Como calar a incoerente voz
do pensamento
para encontrar as palavras
com que me invento?
Demasiado cedo
me soube irmã da noite
porque a luz, indecisa,
perto do rosto me parecia
um pressentimento sombrio.
Com o tempo as emoções têm nome?


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

3.9.09

Em seara alheia



A prontidão das sombras resume
Um simples corpo e resvala sinuosa.
Sei que recordo tudo em certos momentos.

Recordo-te até como se te chamasse,
Como se corresse através do caminho
Que vais preparando junto aos precipícios.

Mas a memória revela o que não sei,
Desfaz sequências de nomes até ti.

Repito a violência e seguro uma pedra
Com as mãos - tal como as tuas - já perdidas.

Repito toda a fragilidade que o teu peso insinua
E derramo a voz ao limite - ossos e carne
Que nos atiram ao chão com o afecto da dor.


Rui Almeida aqui
In: Lábio Cortado. Torres Vedras: Livrododia, 2009
Prémio Manuel Alegre 2008