30.1.14

Com a chuva atravessada nos olhos

Jean Dieuzaide

Vivem na linha costeira dos continentes
com a chuva atravessada nos olhos.
Respiram demoradamente o odor salgado
das algas que lhes perturbam o corpo.
Enfeitam os pulsos com amuletos feitos de búzios
vermelhos para que o medo das noites de temporal
não os ponha em frente da morte
quando, sonâmbulos, escondem o olhar
à lenta agonia dos peixes.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

24.1.14

Em seara alheia



MELODIA

Este é o orvalho dos teus olhos.
Esta é a rosa dos teus vales.
O silêncio dos olhos está no silêncio das rosas.
Tu estás no meio,
entre a dor e o espanto da treva.
Arrancas-te ao mundo e és a perfumada
distância do mundo.
Chego sem saber, à beira dos séculos.
Despenho-me nos teus lagos quando para ti
canta o cisne mais triste.
O pólen esvoaça no meu peito, junto às tuas
nuvens.
Esta é a canção do teu amor.
Esta é a voz onde vive a tua canção.
As tuas lágrimas passam pela minha terra
a caminho do mar.



José Agostinho Baptista
In: Paixão e cinzas. Lisboa: Assírio & Alvim, 1992, p.31

18.1.14

Perda




Naquele fim de tarde em que morreste, mãe, 
nós morremos contigo 
sobre o sangue de um punhal afiado no peito. 
Se estamos agora presos à vida é porque herdámos 
todas as memórias que abrigavas no olhar.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013



Magda Indigo

10.1.14

Barco





Escrito à minha volta, o som da água 
escava o sulco necessário à passagem 
de um barco singrando até ao mar. 
A criança que fui aninha-se no convés 
para amar as gaivotas às escondidas do vento.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

4.1.14

A tremenda voz de um país calado

Magno Torres

Ouves? Não é um tumulto. É a tremenda voz de um país calado.
Não, não é um choro.São inúteis as lágrimas nos tempos da revolta.
Também não é uma reza. Há muito que os deuses não passam por aqui.
Podiam ser canções para enganar a mágoa,mas quem quer cantar agora?
Ouves? É o silêncio feroz dos que resistem.
Ignoremos, então, a exacta trama que nos deforma o pranto.
Cortemos o arame farpado que enlouquece as aves e os homens.
Quebremos os vidros que roubam a entrada livre do ar na planície do peito.
Passo a passo, a alvorada será a revelação do alento 
que, desesperadamente, imploramos. 

Graça Pires, 2014