30.4.13

Em manhãs saturadas de sombras

Josef koudelka


Em manhãs saturadas de sombras
ninguém se reconhece no país
onde os castanheiros velhos não suportaram
a secura que martelou os dias em invisível combustão. 
Rastejamos, então, pelo trilho mais húmido
para que a morte não nos perfure a veia precária
do destino com facas de fogo incendiadas.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

24.4.13

Liberdade




Dir-te-ei: há cavalos verdes nas margens do vento arrostando a claridade do dia quando a luz se inclina levemente para um sul inacessível e a palavra mais livre se abre na voz. Haja o que houver a liberdade é aqui, onde apertamos a esperança contra o peito.


Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

15.4.13

Queria prender no cabelo

Robert Coombs


Queria prender no cabelo
uma haste de sol ou um pássaro,
mas ninguém retirou as trepadeiras secas
para que a hora de verão retocasse a cal
dos muros sulcados pela chuva.
Ninguém indagou o brilho deslumbrado do olhar
quando o golpe da noite desafiava o vulto dos corpos.
Apenas o azul silencioso dos cumes
se abrigou no regaço onde as meninas
escondem o abraço das  mães
para que o mel regresse às colmeias silvestres.


Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2012

9.4.13

A rasar-nos o olhar




É indecifrável a mancha de pinheiros
o âmago da sombra
quando a efemeridade do crepúsculo
rasga devagar o coração dos prados.
Aos muros de paredes cruas
agarra-se impetuosamente
uma figueira-brava.
Um punhal de jade a rasar-nos o olhar
golpeia o brilho do trevo ou da trama
na sorte que nos cerca
Apetece colher todo o verde das maçãs
para que não apodreçam nas mãos da chuva
que voa junto ao chão.
Só os salteadores de estrada
conhecem o segredo das ervas rasteiras.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

1.4.13

Hesitação




Vladimir Clavijo

Não falarei do voo dos insectos em volta das sécias coloridas. Não falarei das marés que desalojam os barcos do rigor da corrente. Não falarei da colcha antiga bordada com lilases sombreados no matiz das cores. Não falarei das palavras que nos cercam de ruídos inúteis. Não falarei do remorso enrolado no sorriso das mulheres que envelhecem a sonhar um destino sem medos. Não falarei. Vou apenas inclinar-me sobre o tempo onde dançam os anjos com as sombras que me procuram.
Graça Pires
De Caderno de significados, 2013