30.10.23

Nítidas lágrimas





Como se um aviso de luz me purificasse,
reconheço o meu vulto na ortografia
de nítidas lágrimas onde encontro
de permeio a vida inteira
e me busco cheia de abismo,
cheia de noite, cheia de labirintos,
cheia de palavras imperfeitas.
Talvez ninguém conheça a violência
da luz ao longo do rosto,
quando as lágrimas deslizam
em pequenas gotas sobre a pele.
A forma oculta do choro faz entornar
o hálito num estranho vazio.
A ferir a indecisão do brilho molhado.
A naufragar os olhos tão inundados de vento.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 70

23.10.23

Oferenda

Manuela Barroso

                                                                                          
                                                                                                     Para a Manuela Barroso

Abres as portadas. 
Um brilho na floração do jardim 
que o amanho dos canteiros harmoniza 
expõe o teu olhar à contemplação da luz 
a fixar em cada flor o movimento do sol. 

O aroma da seiva alenta-te o dia que começa. 
O fluxo do sangue como uma oferenda. 
Improvisas uma oração. 

E procuras a trama verde das sombras
para amar a folhagem de árvores frondosas: 
floresta furtiva paisagem mágica 
presença divina abrigando os ventos. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 23

16.10.23

Entre ruínas



Pressentir a morte na desmesura de uma afronta 
na opressão interminável de cada rua queimada 
de cada disparo de cada cerco de cada agressão. 

A revolta presa na arma do terror. 
A coragem engatilhada nas mãos. 
O susto das sirenes no rosto dos filhos 
e na correria angustiada das mães. 
O clamor sufocado nas lágrimas 
e no sangue a quem dói violentamente 
o exílio do chão onde nasceram. 
A exaustão a golpear o corpo. 
A força do silêncio a ensurdecer o grito. 

Sem tréguas sem resgate sem sujeição 
hão-de abraçar-se fortemente entre as ruínas.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 64

9.10.23

Para me sagrar de silêncio

Ana Pires Livramento


Na linha de qualquer rio passaram águas 
que deixaram mais sedentos 
os lábios e a garganta. 
Cada detalhe de versos 
sem horizontes líquidos 
risca-me na pele o fracasso da voz 
desarticulando a paisagem. 
Rojo-me sobre os nomes que não esqueço, 
na imensa possibilidade de os tornar legítimos 
na precária imortalidade dos dias. 
Invento horas extras para me sagrar de silêncio. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 55