28.7.25

Os livros

Jacek Yerka




Discretamente refreio o gesto
de acertar os livros pelas lombadas.
Qualquer desalinho me devolve
agora a leitura inicial.

Indago a visão concreta do invisível
para virar a linguagem do avesso
e ler nas entrelinhas
o que antes me pareceu ilegível
nas palavras desviadas
nos sons discordantes.

E deixo que a fala se estenda pelas
páginas de um livro entreaberto.
Como folhas de árvores no jogo do vento
ou um grito claro de ondas em tempestade
ou a perfeição repentina de um círculo
ou a ortografia de silêncios presa às mãos.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2013, p. 44


Desejo a todas as minhas amigas e a todos os meus amigos uns dias muito agradáveis no mês de agosto, com muita paz, saúde e amor. Voltarei em setembro.


21.7.25

No culto da palavra

Silena Lambertini

Continuarei a definir o exíguo espaço 
de uma errância no culto da palavra. 
Habita-me a expectante mudez 
de um náufrago preso ao barco que o salva.
Escavo o traçado 
de um alfabeto de subtil simbologia. 
Como deriva de âncoras sem retorno, 
ou um sacramento, ou uma gíria mística, 
ou uma vaga promessa de alegria, 
protejo na bainha do texto 
uma sintaxe quase sagrada.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui,2021, p. 52

14.7.25

Bolero de Ravel







Ouço em modo
de oração antiga
pausadamente rezada
o bolero de ravel.
O ritmo invariável
quase silencioso
elevando o tom.
Como água imóvel
retida refreada
até ao tumulto crescente
de rios que se juntam
para galgar a sede.

Graça Pires
De Talvez haja amoras maduras à entrada da noite, 2015, p. 37




7.7.25

Em seara alheia

 





queremos estar vivos hoje
recusamos grilhetas antigas de senhores que já matámos
recusamos prender estas bocas
que queremos transbordantes de música

queremos estar vivos hoje
lançar braços sobre o silêncio
rasgar a solidão que cerca de arame farpado
os corações amortalhados nas grandes metrópoles

queremos estar vivos hoje
dizer esta alegria por dentro de nós
derrubar muros e barreiras de línguas e nações
somos todos a mesma gargalhada
e ousamos querer tudo que a tudo temos direito

queremos estar vivos hoje
que ninguém nos venha dizer por onde ir
porque hoje
hoje nós sabemos o que queremos
os caminhos por onde seguir

queremos estar vivos hoje
gritar raivas antigas alegrias novas
pontes para um amanhã
que hoje queremos nosso

porque hoje
hoje
queremos estar vivos sempre

ahcravo gorim
In: Sentou-se à mesa do café. Imagens Elisa Scarpa. Babilónia, 2025