17.12.18

A ilusão cresce nas montras

Pedro Pires Livramento

A ilusão cresce nas montras
presa nas bolas coloridas das árvores
abundam e brilham corações e estrelas
misturam-se figuras cristãs e pagãs
e há um fio que nos prende
e nos deixa suspensos entre o céu e a terra
e nos leva os nervos
para a terra passageira dos sonhos
natal dos ímpios e dos impuros
que lavam a cara no mar do lucro
Jesus morreu
mas os sinos repicam
os anjos embebedam-se 
de verde vermelho e dourado
de fitas e laços
e cantam
glória a Deus nas alturas
e paz na terra aos homens de boa vontade
as mãos estendidas dos pedintes
sorriem de esperança
ao dia da sopa quente a chegar

Graça Alves
In: Da timidez dos homens. Coimbra: Palimage, 2017, p. 41






Que venham os anjos que nos guardam refazer em nossas mãos um presépio de amor.
Que celebrem em nosso olhar o desejo da luz, a promessa da paz, a certeza do bem-estar.



Um Bom Natal e um Novo Ano Melhor !

Até para o ano…



10.12.18

Mulher com olhos azuis



Amedeo Modigliani


Vou pela noite com borboletas
azuis afogadas no olhar.
Não entrevejo a lua,
nem há vultos indiscretos
assombrando o espaço à minha volta.

Parece de sombra, eu sei, este meu gesto
de segurar, com a mão direita
as bordas do vestido.

Ignoro se relembro as noites da infância,
em que evocava, no escuro, os barcos,
os piratas, as princesas, emergindo
todos do contorno das trevas
que se amontoavam nos meus olhos
até adormecer.

Não sei se procuro os avanços e recuos
de um passado em que o azul das garças
fazia nos meus olhos a secreta anunciação
do arco-íris à boca da manhã.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p.36

3.12.18

Quase lágrimas

Walker Evans

O viajante ajoelhou-se sobre a terra
e cantou e cantando rezou.
Carregava nos ombros o afluente de um rio
para o largar no longo chão das lavouras.
O pão ázimo lhe sufocava a fome.
A chuva lhe esquecia a sede.
Seu coração emudecia quando um denso
nevoeiro (quase lágrimas) lhe gravava na boca
o clamor dos glaciares desmoronados.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 40

26.11.18

Em seara alheia



Afagas a mesa com tuas mãos de terra, mãos
nodosas habituadas à delicada tarefa das raízes.
Abres uma toalha branca. Uma toalha de linho
que deixa no terraço um odor a lavanda e estudas
o silêncio pelo intervalo das gárgulas, enquanto as
mulheres, exaustas, dispõem os copos, as fatias de
broa, os jarros com sangria. Afagas a mesa para o
rito primordial, pedaço de um sagrado que se abre
pelo terraço, pelos animais, pelos corpos sempre
divididos entre a violência do trabalho e a ascendente
pureza do desejo. Afagas a mesa para essa cerimónia
sem castigo nem pecado, sentas-te depois expetante
com uma terrível ausência a teu lado.

Victor Oliveira Mateus
In: Aquilo que não tem nome.  Posfácio de Ana Paula Dias. Lisboa: Coisas de Ler, 2018, p. 12

19.11.18

Tão verdes as mãos com que agarrávamos o tempo

Ana Pires Livramento

Os rituais da infância não nos deixam esquecer:
Era verde a sombra das árvores no pátio da escola.
Eram verdes os trigais pejados de papoilas.
Eram verdes os pássaros que traziam um prado
colado ao voo rasante, nas tardes de verão.
E os rios tão verdes. Tão verdes as águas.
Tão verdes os peixes. Tão verdes os barcos invisíveis.
Tão verdes as mãos com que agarrávamos o tempo.

Graça Pires
De Uma vara de medir o sol, 2018, p. 27


Esta semana, o livro já pode ser encomendado por quem o desejar, em qualquer livraria, ou na Editora Coisas de Ler. Serão substituídos os livros das pessoas que o adquiriram no lançamento. Peço desculpa pelo que aconteceu e espero que gostem dele.

12.11.18

Cantaremos um salmo pela terra


Temos um quebranto no friso do olhar
e demoramo-nos no canteiro dos amores-perfeitos
para que as mãos cobertas de melindre
sintam a pulsação das árvores em prece.
Em redor da cintura enrolaremos
os sonhos do mundo
e cantaremos um salmo pela terra, tão inquieta
pela aflição dos ventos da montanha.
Uma harpa de chuva evocará as pétalas perfeitas
na ponta dos dedos.

Graça Pires

De Uma vara de medir o sol, 2018, p.33

29.10.18

Convite - UMA VARA DE MEDIR O SOL

Atenção! Devido a erros de impressão que afectam o conteúdo dos poemas, peço que não façam pedidos até o problema estar corrigido...





Anteriormente publicado no Brasil, este meu livro "Uma vara de medir o sol" chega agora aos meus leitores portugueses que, tenho a certeza, o vão apreciar.

Esta sessão de lançamento, juntamente com o belíssimo livro do Victor Oliveira Mateus "Aquilo que não tem nome", fica à espera que nos deem o prazer da vossa presença. Obrigada.
De pé, demoradamente invocando
o grito do destino, somos a sombra
de uma vara, presa à inclinação do sol,
que define a vertigem que nos derruba
e que nos ergue.

De Uma vara de medir o sol, p.35

22.10.18

Em seara alheia


des.construção


*
perturbante o caminho de mensagens
que um dia tiveram destinatários

*
delas nada resta
a não ser o Ser-ainda-mar
quando a paisagem se impõe remissiva e
o bom senso exige
adeus aos heroísmos

*
somos tão só
mensageiros do devir

Gabriela Rocha Martins
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 73

15.10.18

Em cima dos rochedos

             
Heinrich Vogeler


Em cima dos rochedos aprendi a observar
as migrações dos pássaros, a descobrir
pelas estrelas a direcção dos navios
e a entender os gritos das mulheres
caminhando loucas pela praia
quando pressentem a traição do mar.
As nuvens concentram-se no horizonte
como lágrimas em relevo
engrossadas pelo relento.
Dói-me nas mãos uma crueza 
semelhante a uma emboscada.
Graça Pires
De Espaço livre com barcos, 2014, p. 17

8.10.18

Convite - Antologia CONTINUUM no Porto


Os autores desta antologia: Francisco Valverde Arsénio, Lídia Borges, Isabel Cabral, João Carlos Esteves, Gabriela Rocha Martins, João Morgado, José Luís Outono, Rita Pais, Graça Pires agradecem a vossa presença. Tenho a certeza que vão gostar participar, se puderem, neste encontro de cores e palavras com o céu do Porto.

1.10.18

Jeanne com blusa branca

Amedeo Modigliani


Abri de par em par as portadas das janelas
para deixar passar a luz deste alvorar ao sul.

Trago no sangue o suco da fruta
a provocar a língua, de outras águas
recordada e o sabor acetinado das romãs.

Trago na pele o veludo dos pêssegos
arredondados na mão antes da boca
e a previsão rigorosa das manhãs claras.

Em volta dos meus ombros sobrevoam
abelhas invisíveis atraídas pela brancura
da blusa, ou pelo lago azul do meu olhar,
onde flutua o pólen da tristeza.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, p. 40

24.9.18

Nos dias tranquilos

Vicki Mcmurry

Sem motivo aparente, a quietude
desliza no interior da casa.
A luz que a inunda nos dias tranquilos
tem uma inclinação tão perfeita
que até os mais inacessíveis ângulos
se sobressaltam com o próprio brilho.
É raro amanhecerem dias assim:
debruçados sobre o sol, com a inesperada
imparcialidade das sombras.
No horizonte desenha-se a demora
nocturna, na intensidade do poente
preso à maré mais recuada.
À mercê da brisa procuramos uma prece,
uma canção, um tumulto de asas
e a vertigem incontida das estrelas.


Graça Pires

In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 118


ATENÇÃO: A apresentação desta Antologia Continuum vai realizar-se no Porto, no dia 13 de Outubro, pelas 17 h., no Bar Era Uma vez, na Rua das Carmelitas, 162. Desejo que, quem estiver por perto, esteja interessado em participar. Os autores agradecem.

17.9.18

Em seara alheia


Ensaios

A sede instalou-se.

na aridez da ausência
o pó dos dias velou a memória do toque
e da pele em fogo

as tuas mãos
perderam o rumo do meu corpo

e eu
já só renasço quando me sonhas

João Carlos Esteves
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 56

10.9.18

A medida certa de um abraço

Amanda Cass


                                      Para a Cleri Aparecida Biotto Bucioli


Vieram do oceano ou do fundo do olhar
as aves com asas aniladas.
Sobrevoaram a praia deserta
e pousaram na escarpa mais alta
para avistarem a distância
que o vento apetece em suas penas.
Na linha das areias, a medida certa
de um abraço.

Graça Pires 
De Uma claridade que cega, 2015, p. 42

3.9.18

Inesperadamente jovens

Andre kohn

Já os pássaros marinhos voavam sobre os barcos
e a rebentação das ondas atingia a areia das margens,
quando as nossas mãos, tão próximas,
rondavam tempestades na concha do olhar.
Só nós adivinhávamos a inclinação das âncoras
pelo estremecimento dos mastros
e pela fulguração dos corpos inesperadamente
jovens, incendiando as águas.
Em nossos pulsos abertos às quilhas
conhecíamos os mares incertos onde os naufrágios
faziam dos teus e dos meus braços
o remo e o rumo da viagem.
Havia limos a amaciar-nos a pele.
No relevo dos ombros,
uma lâmina de sal alucinava-nos o sangue.
E a cúmplice respiração de nossas bocas
denunciava o frémito da maré-cheia.

Graça Pires 
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 120


27.8.18

Mulher com chapéu

Amedeo Modigliani


Não sei há quanto tempo me ardem
os olhos, quando um bando
de pássaros invade o sossego
da paisagem, como se me ofuscasse
a espessura agitada do seu voo.

Comecei a usar um chapéu de abas
largas para iludir o brilho desmedido
que desliza sobre as coisas.

Os meus olhos, é certo, já não têm
a mesma cor que tinham na infância.
Perderam a transparência e o dom
de fitar o sol sem enceguecerem.

Por isso, apenas posso olhar a lua cheia
como fazem os poetas e as bruxas.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 30


20.8.18

Em seara alheia



as rodas da saia I

minha mãe deu-me uma saia
a saia de sua mãe
a saia roda no corpo
de minha filha também
minha neta pequenina
anda também a rodar
na roda da saia dela
em todas que há de gerar.
a saia roda no tempo
das rodas que o tempo tem
e por mais que rode a saia
não lhe escapará ninguém.

Maria Isabel Fidalgo
In: À roda da saia. Braga: Poética, 2018, p. 12

13.8.18

No cerco da noite

Katia Chausheva

No cerco da noite deixo à solta
a minha expressão narrativa.
Sei que não cabem nestas folhas,
neste texto, nestas margens
as sensações que ao coração pertencem.
Mas é inútil. É inútil deambular pela escrita
evadida das noites insones, com vozes
sem sentido e enredos improváveis.
Convoco os anjos com suplicantes hinos
até à visitação do silêncio,
até que o sopro do sono apague
os sons despedaçados de quem escolhe
o caminho mais longo para regressar a casa
e tropeça nos próprios passos.
Perto da manhã, aceito a sedução
do orvalho em torno dos sonhos.

Graça Pires

In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 116

6.8.18

A sombra do pássaro azul

Albino Moura




À memória do escritor Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)



Continua a sobrevoar o meu peito
a sombra do pássaro azul
adormecido no delicado coração da luz.
Insubmissa, a sede presa à nascente do olhar
guarda em cada lágrima 
a clara liberdade de seu voo.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p. 37


30.7.18

Em seara alheia


Cheiro de mar

Trazem o cheiro do mar
em redes na pele,
o crepúsculo cativo nas conchas
a areia açoitada por ventos teimosos, despida no olhar.
Têm nos dedos o cântico do desejo
como pergaminho desenhado no odor.
Trazem cheiro de mar,
sal colado aos cabelos
e fome de suor.

Isabel Cabral
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 46

23.7.18

De pedra em pedra

Ana Pires Livramento


A manhã reacende o sol
na aba do chapéu que uso, 
expressamente,
quando passeio à beira da água.
De pedra em pedra
regresso à outra margem do rio
onde te procuro para respirar 
a brisa de alfazema 
que transportas no sorriso.


Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p. 53

16.7.18

Entre silêncios

Katia Chausheva

Diz o que viste quando desviaste
o olhar da claridade matinal.
Ficaste com mãos indecisas
na orfandade da luz.
E, ao redor dos lábios,
um espaço deserto desdizia
o esboço das palavras
que sempre afirmaste serem tuas.
Como se precisasses de outra boca,
de outra voz, de outros sons.
Como se o centro esvaziado de um grito
traçasse um vínculo contínuo entre silêncios.

Graça Pires
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 121 

9.7.18

Menina de tranças

Amedeo Modigliani

Não sei se os espelhos
me querem enganar,
ou se tenho agarrado à pele
o clarão das searas.

Hesitantes, os pássaros, gostam
de balouçar nas tranças
que me caem sobre os ombros,
enquanto corro, assombrada
e sem fadiga, em direcção
à última luz do dia.

Escondi, atrás dos cântaros, algas
escorregadias para deslizar até ao mar.

Vou conhecer a exultação das marés
no excesso da torrente.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 32 

2.7.18

Quase sede

Francesca Woodman



Um calor, quase sede,
amadurou as cerejas
nas bocas festivas,
envoltas em aromas de gula.
Apetece a sede assim adivinhada.
Apetece o hálito espesso
que a língua em seu ceder retém.
Apetece morder. Até ao caroço.
Com os dentes devassos de disfarçar o riso
ou roer as unhas junto aos muros
que amam os vendavais
e a flagrante solidão das borboletas.

Graça Pires 
In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 117