30.10.17

Mais perto da inocência

Katia Chausheva 

Escuto até à exaustão 
os rumores de um tempo mais remoto 
e evoco os primeiros acenos 
onde deixei a espera e o desespero 
das noites ao sabor da lua. 
Usei nos punhos as pulseiras 
interditas à luxúria. 
Só de madrugada as trepadeiras 
ficavam mais perto da inocência.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

23.10.17

Em seara alheia




AS DOBRAS DO TEMPO

Escuto os sons da casa,
murmúrios
retidos nas dobras do tempo.
Já a voz não ilumina
as sombras que se deitam nas paredes.
Paira um vestígio ténue
dos aromas vibrantes de outrora,
talvez esteja em mim
guardado.
Sou eu mais que um sacrário
de lembranças
que se consome passo a passo
na senda de duvidosa redenção?

Alice Duarte
In: Um pássaro antigo nos olhos. Modocromia Edições, 2016, p. 40

16.10.17

O tumulto das areias


José Pancetti

Com barcos torneando os ombros
decifro o rumo das viagens
em minhas mãos atentas ao desalinho
das cordas destecidas pelas vagas.
Sei que os mapas não assinalam
o tumulto das areias com que o vento
vai refazendo as dunas.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

9.10.17

Menina com bibe

Amedeo Modigliani

Quem foi que roubou os meus sonhos
brancos de menina e me pôs no olhar
a imensa clareira da tristeza?

Como esquecer aquele tempo
em que eu brincava com o vento
e rebolava na erva e cantava
com as cigarras e me espantava
com o desenho das nuvens?
Como não lembrar os dias
em que nada quebrava a porcelana
dos lírios de intacta leveza?

À margem de trilhos ao acaso
vagueio para além de mim
sem que os pés se amarrem ao chão. 
As minhas mãos, sobre o regaço,
estão trémulas e vazias.

Retenho as lágrimas
como se dispersasse as chuvas.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017 

2.10.17

O tempo sobre o tempo

CNB

De repente era eu no prolongamento de mim.
Tracei o próprio corpo em transparência de tule.
Na ponta das sapatilhas pousaram aves inquietas.
Esboçaram a leveza azulada das sombras,
cindidas em singular aceno.
Rodopiaram a claridade dos sonhos
até que rosto algum pudesse resistir-lhe.

De repente eras tu no prolongamento de ti.
A roçar o meu chão.
Em impulsos cativos do espaço.
Em tumultos circulares até ao infinito.
Em vertigem aflita por cima do abismo.
A fazer da queda um tão breve equilíbrio,
que o tempo sobre o tempo renascia.

Depois fomos nós.
Primeiro a sedução, indecisa ainda,
no improviso do desejo.
Um movimento subtil a enredar-se
na demora de pressentir o gozo.
E desse tardar, vencidos nos repartimos na dança,

no tango: o prazer do jugo presumido no olhar.
O corpo todo, que cede e se recusa no júbilo do sangue.
Ai, devagar, que os ardis deste cerco nos tomaram.

Graça Pires
In: A CNB e os Poetas, 2016, p. 27

Poema feito depois de ter assistido ao reportório de bailados “Serenade”, “Grosse Fuge”, Herman Schmerman” e “5 tangos”, a convite da direcção da CNB, através de João Costa, Fev. 2016.