26.1.12

Procuro o teu rosto

António Quadros

Presa às marés, outras margens me circundam.
Procuro os teus braços.
Esgota-se em cada dia, lentamente,
a viagem do tempo que expõe a rigorosa
proa no vértice dos dias.
A densidade do sal partiu-me os remos
e entranhou-se-me nas veias como um tormento.
Tenho um barco parado a obstruir-me os lábios
colados à rugosidade dos mastros.
Procuro o teu rosto.

Graça Pires
De A incidência da luz, 2011

19.1.12

MÃE!


Tanto tempo que eu passei sem aqui vir
disseste, mãe, quando notaste
como era imenso o azul do mar.
Teus olhos carregados de ausência.
Tuas mãos tremendo de tanto vagar.
Teu corpo aquietado de tanta canseira.

Graça Pires

De A incidência da luz, 2011

12.1.12

Tudo se passou naquele inverno



Tudo se passou naquele inverno
em que caiu a figueira junto ao muro.
As oliveiras escondiam entre as folhas
alguns aromas da tarde que o alecrim
teimava em espalhar.
Um estranho silêncio ensurdeceu
as mulheres que se fecharam nos quartos
para sufocarem os gritos.
Deslizava-nos pela cara uma forma
de tristeza que nos inundou a boca.
Uma luz ensombrecida
alongou a treva em nossos olhos.
Entrámos em casa com cuidado
para que a noite não se esgueirasse
pela assimetria das janelas.

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

5.1.12

Como um lamento

Ana Pires

Tento esboçar o tamanho da lua cheia
no vértice das empenas viradas a nascente.
Tento calcular a geometria do mar
que bate nos limites do molhe
como um lamento adivinhado.
Tento seguir as pombas que invadem as cidades
com rumores de solidão colados nas asas.
Trago a enfeitar-me o decote pérolas de areia e sal.
A surpreendente claridade das águas
lava meus olhos da sugestão de tormenta
que guardo por hábito sobre o rosto.


Graça Pires
De A incidência da luz, 2011