26.6.14

Em seara alheia




o Verão não tinha limites.
a mulher lidava com a casa pele com pele
andava todos os dias muito de noite
dias e dias de noite de roda dos fetos
toda dentro do Verão sem nenhum
tornozelo de fora.
era o Verão em hora de ponta
a mulher arrastava-se dentro da mulher.
os dias só faziam sentido existindo noites
as noites só faziam sentido trincando nêsperas
e bordando palavras que dessem sombra no ventre.

uma noite a mulher bordou a palavra mulher
e deitou-se de bruços.
era quase luz quando a primeira letra se ergueu.
e sem que houvesse tempo de escolher canção e vinho à altura
dessa primeira letra saiu o corpo
íngreme
arado
torrencial
do que havia de ser o anjo.

Catarina Nunes de Almeida
In: Marsupial. Lisboa: Mariposa Azual, 2014, p. 16

19.6.14

Janela

Toulouse-Lautrec

Abro todas as janelas para que a brisa se aproxime. 
É madrugada e o cheiro da maresia é tão intenso 
que as ondas parecem quebrar-se contra a casa. 
Sinto a aragem do sul com sua lâmina de sal a roçar-me a cara. 
E daqui, desta janela, começo a amar o assombro 
dos náufragos atraídos pelo chamamento dos búzios 
e pelo alvoroço das aves em redor dos barcos.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

12.6.14

Noite

Francesca Woodman

Onde os vultos escurecem na exactidão do olhar 
desvanecendo a cor dos lírios 
começa o enigma da noite: 
sombra de uma sombra, 
esse outro modo de luz transfigurada.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

5.6.14

Em seara alheia




Importa redimir a inocência das coisas
E libertar a palavra deserta. E no rosto solar dos homens
Estilhaçar o Espelho e verter o vento.
E as mãos doridas. E o barro amassado.
E as dores do parto.
E na imanência redentora das sombras
Escutar a subtil Diferença
E alargar espaços onde os dias sejam
Claros.

Manuel Veiga
In: Poemas Cativos. Macedo de Cavaleiros: Poética Edições, 2014, p. 54