27.3.22

Em seara alheia



A Casa 

Faz uma casa de areia e conchas.
Pinta-a de cor nenhuma,  
nenhuma porta, nenhuma janela, 
Vivemos na transparência do sonho
Encosto-me à luz quando 
deixamos porções de nós 
coladas, suspensas, 
rentes à pele fina das memórias, 
como mares e instantes. 
Como se tu ainda fosses luz 
em cada degrau, cada aresta, 
cada palavra. 
São rumores de existir. 
Ecos do coração. Retalhos. 
Perdas. Silêncios. Mãos dadas. 
Noites. 
Beijos que o coração devolve.

Lília Tavares.
In: Casa de conchas. Prefácio de José António Falcão. Modocromia, 2022, p. 64



21.3.22

Regressa a mim poesia

Virgínia do Carmo


Regressa a mim, poesia! 
Vem vibrar-me no âmago. 
Sem nomes, nem lugares, 
nem significados, nem imagens. 
Traz apenas o espanto 
da palavra revelada, clara, infinda. 
Que me alucine, que me habite, 
que me restitua a primordial singeleza. 
Regressa a mim, poesia! 
Define a sombra que me precede 
nas manhãs luminosas 
e o sobressalto do silêncio mais frágil, 
em agitadas noites. 
Devolve-me, te imploro, o eco 
da linguagem primeira com que te celebrei! 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 56


Quem desejar ouvir o poema dito pelo meu filho Pedro pode fazê-lo aqui:

                                                           https://youtu.be/RYR3vz4n-4k 


14.3.22

A desordem do meu rosto

Toulouse-Lautrec


Sobressalto-me com a desordem do meu rosto. 
Talvez me seja impossível entender 
tudo o que é irremediável. 
Um desafio reencena no meu coração 
sem fronteiras um jogo de máscaras sombrias, 
descarnando até ao grito a solidão do mundo. 
A solidão do abandono, da fome, do medo. 
A solidão sem fuga, sem endereço. 
Com sons fúnebres. 
Com mãos cegamente desvairadas. 
Com ruas negras. 
Com ventos malditos. 
Sem sobreviventes da desolação 
e da intriga tecida pela crueldade. 
Uma vegetação de mágoas 
assumindo desastres e demências. 
Um porvir aberto à impiedade 
dos deuses e dos homens, 
num diálogo de palavras mudas.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 58

7.3.22

As mãos das mulheres

Lourdes Castro

Tão atarefadas sempre, as mãos das mulheres 
ficam por vezes vazias de afagos, 
quase ausentes e indecisas 
no esboço de desejos sem retorno. 
É então que aprendem a atear o fogo 
com a benevolência debaixo da língua 
e inventam um alfabeto transparente 
para descreverem com detalhe 
as madrugadas silenciosas. 
Aquelas que colocam no olhar 
um estremecimento sagrado 
e permitem adivinhar a perfeita simetria de aves 
a rasarem a silhueta das casas. 
Por isso esperam, ansiosas, de olhos colados na janela, 
o regresso dos bandos de estorninhos no fim do verão.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 35