31.10.16

Tantas vezes vida, tantas vezes morte

Agnieszka Motyka 

Neste momento dou ao meu perfil
a configuração de uma haste
que, ao primeiro sopro do vento,
adivinha um fogo posto nas palavras.
Conheço o rigor das noites
e o alarmante traço
da obsessão pelas trevas
que me cingem os braços
quando o reflexo do luar
incide nas manchas do meu rosto
e com os mais antigos olhos
posso rever o passado:
tantas vezes vida, tantas vezes morte.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

25.10.16

A escrita das águas

Emerico Imre Toth

Olho em meu redor.
A chuva afaga as raízes das árvores
e agita seus ramos como se fossem
mantilhas de seda agasalhando
os pássaros no rodeio do vento.
Sei que o tempo não se detém.
Os muros mais severos assinalam,
sem dissonância, a escrita
repisada das águas que a idade
guardou na borda das pedras.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

17.10.16

Quero inventar o mar de cada dia



Hoje, que não escuto o mar
fujo na crina de um potro livre,
sem jugo, em veloz cavalgada.
Tenho nos olhos um incêndio tangível
à luz que se quebra no galope
ágil e sonoro da fuga.
Irrompe sobre mim o perfil dos montes
que me diz a que distância deixei o mar.
Um odor de poeira impede-me de gritar.
Doeu-me a voz quando bradei,
sem fôlego, o verso de neruda:
quero inventar o mar de cada dia.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015

10.10.16

Em seara alheia


Cantou cansado
Um hino ao desencanto,
Como se fosse possível
Tomar para a alegria
O caudal de impurezas
A deslizar da solidão.

Cantou com a fraca voz
Dos que olham para dentro
Dos poços à espera
Que a água transborde.

Rui Almeida
In: Muito, menos. Lages do Pico: Companhia da Ilhas, 2016, p. 36

3.10.16

Paz

Larry Burrows

Sobrepor a voz à dor sem pátria. 
Estar lá onde o olhar de todas as mães 
procura o olhar de todos os filhos. 
Ter um nome de combate para dizer paz.

Graça Pires
De Caderno de significados, 2013