27.8.18

Mulher com chapéu

Amedeo Modigliani


Não sei há quanto tempo me ardem
os olhos, quando um bando
de pássaros invade o sossego
da paisagem, como se me ofuscasse
a espessura agitada do seu voo.

Comecei a usar um chapéu de abas
largas para iludir o brilho desmedido
que desliza sobre as coisas.

Os meus olhos, é certo, já não têm
a mesma cor que tinham na infância.
Perderam a transparência e o dom
de fitar o sol sem enceguecerem.

Por isso, apenas posso olhar a lua cheia
como fazem os poetas e as bruxas.

Graça Pires
De Fui quase todas as mulheres de Modigliani, 2017, p. 30


20.8.18

Em seara alheia



as rodas da saia I

minha mãe deu-me uma saia
a saia de sua mãe
a saia roda no corpo
de minha filha também
minha neta pequenina
anda também a rodar
na roda da saia dela
em todas que há de gerar.
a saia roda no tempo
das rodas que o tempo tem
e por mais que rode a saia
não lhe escapará ninguém.

Maria Isabel Fidalgo
In: À roda da saia. Braga: Poética, 2018, p. 12

13.8.18

No cerco da noite

Katia Chausheva

No cerco da noite deixo à solta
a minha expressão narrativa.
Sei que não cabem nestas folhas,
neste texto, nestas margens
as sensações que ao coração pertencem.
Mas é inútil. É inútil deambular pela escrita
evadida das noites insones, com vozes
sem sentido e enredos improváveis.
Convoco os anjos com suplicantes hinos
até à visitação do silêncio,
até que o sopro do sono apague
os sons despedaçados de quem escolhe
o caminho mais longo para regressar a casa
e tropeça nos próprios passos.
Perto da manhã, aceito a sedução
do orvalho em torno dos sonhos.

Graça Pires

In: CONTINUUM: antologia poética. Pinturas de Luís Liberato, fotografias de Soledade Centeno. Braga: Poética, 2018, p. 116

6.8.18

A sombra do pássaro azul

Albino Moura




À memória do escritor Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013)



Continua a sobrevoar o meu peito
a sombra do pássaro azul
adormecido no delicado coração da luz.
Insubmissa, a sede presa à nascente do olhar
guarda em cada lágrima 
a clara liberdade de seu voo.

Graça Pires
De Uma claridade que cega, 2015, p. 37