30.5.22

Roubava ameixas no quintal do vizinho

Vincenzo Balocchi

Roubava ameixas no quintal do vizinho
Em volta das árvores, 
o som dos seus passos 
apressados metia-lhe medo. 
Quando fugia era mais veloz 
do que os pássaros 
que lhe abafavam a fuga. 
Então partilhava com eles 
o suco espesso da fruta 
e escondia nas penas das aves 
um desprevenido regozijo. 
“Um dia hei-de encher as algibeiras 
 mais largas que tiver”, pensou. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.13

23.5.22

Em que naufrágio me salvei

António Costa Pinheiro

Um cristal onde me espreito 
devolve-me a minha imagem: 
sudário desatado ao vento 
como um veleiro a todo o nó, 
resgatando viagens  
e despojos da ilha há tanto tempo 
adiada no meu peito. 
Em que naufrágio me salvei com gestos imprecisos? 
Na minha boca, um mar interior 
inunda as dunas mais distantes 
preferidas pelo vento, 
com areias em clandestinas danças. 
Costuro, com búzios brancos, 
redes de pescadores 
para poder mergulhar o grito das mãos 
fugidas das marés sem fundo, 
agredidas pela luz nocturna. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 42

16.5.22

Em seara alheia




III 

Os abraços 
Os abraços da gente 
            que sabe abraçar 
Os abraços de corpo inteiro 
Abraçar como se fosse acabar o mundo 
            sentir o que os outros sentem 
            o calor de um corpo desabotoado 
A tristeza do abraço falhado 
            do abraço que faltou 
Há quem se abrace a si próprio 
                frente a um espelho muito antigo 
                a auto consolação 
Abraçar o que não vemos 
                mas sentimos 
O que nos chama sem chamar 
O que que nos toca sem tocar 
Dirão que estamos a abraçar o nada
Será 

Jorge C. Ferreira 
In: 60 poemas [mais um].Lisboa: Poética, 2022, p. 13

8.5.22

Memórias de Isadora XVIII

Paul Berger


Como um desígnio aceitei 
a demanda fecundada de meu ventre. 

No cristal mais límpido da existência 
me consenti o sublime anseio de ser mãe. 
E sitiada me atentei desse milagre. 
E seu domínio concedi em meus enleios. 

Os meus filhos. 
Na meiga luz de seus olhos 
me iluminava toda, me purificava. 
Embalava-os como se me acalentasse. 
Com seu choro misturei os meus gemidos. 
Com seu riso renovei todos os pactos 
com alegrias e deleites. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p.41

O meu forte abraço para todas a mães do Brasil, de Portugal e de todo o mundo, principalmente para as que estão em sofrimento e abandono.

1.5.22

No dia da mãe, para os meus filhos com amor

Selfie tirada por Pedro Pires

Vem de tão longe, meus filhos. 
Vem do começo sagrado dos tempos 
e do silêncio dos dias ao acaso, 
a grandeza de cada gesto. 
É preciso ter asas e deixar 
que o fascínio vos conduza 
até ao infinito, onde a avidez da vida 
inaugure no olhar o prodígio do espanto 
e a pura nascente de todas as sedes. 
Onde haja uma planície festiva 
reinventada em vosso rosto 
enaltecendo o amor. 
Onde continuem intactos os íntimos 
pretextos que o coração concede. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 36

Se gostarem de ouvir o poema podem fazê-lo aqui:

                                                                https://youtu.be/5rtWvkY0tAo