28.12.08

Mãesagem


É possível que as arestas das montanhas
se arredondem de paixão pelo brilho da seiva,
quando a manhã se acende.
É possível que revoadas de pássaros
sulquem o céu, reinventando uma terra,
maternal e verde.
É possível.
Pode ser um recomeço,
uma promessa, um sobressalto,
um sinal da nossa inquietação,
neste planeta quase estrangulado,
em que nos vamos tornando forasteiros
assustados, não vá a morte surpreender-nos
na fronteira de qualquer negligência.
Pronunciemos, devagar, um acto de contrição,
até que a luz penetre, nua, o útero da paisagem,
e a fecunde, ou não teremos rio algum
que purifique a nossa sede.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996


Mãesagem é o nome de uma escultura de João Cutileiro

19.12.08

Em seara alheia

O Natal

Fotografia de Gisela Ramos Rosa: António Ramos Rosa a desenhar, Novembro de 2008


O campo que desdobro e rodopio é um corpo
que do meu corpo nasce, que do meu campo solto
António Ramos Rosa, Campo e Corpo

Nascerei sempre
que a palavra vier ter comigo
como a paisagem de uma manhã de
Natal
mesmo quando as pedras sem cor
me conduzirem por entre as calhas
e no horizonte só os barcos ausentes navegarem

nascerei sempre que as palavras amanhecerem
como fogueiras vermelhas de presença
e a tua voz incendiar o silêncio

ainda que minhas mãos
nem sempre encontrem uma janela
mas muros que crescem mesmo quando derrubados

mas nascerei, nascerei sempre que
na palavra encontrar o teu rosto


Gisela Ramos Rosa

07-12-08
Desejo a todos um Natal cheio de Amor e Luz...

12.12.08

Por onde se volta à infância

Inês Gonçalves

Que cilada flutua sobre a espuma
da língua enrolada em vocábulos?
Com que voz se rompe o centro da desordem,
para deixar passar o poema,
ansioso de uma rua larga?
No lugar em que os rios se cruzam
com os olhos dos poetas,
rodopia o tempo de uma fábula,
por onde se volta à infância,
com a noite dilatada nos olhos
e a boca legendada de contos de fada.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

8.12.08

Memórias de Dulcineia X

Degas

De tão longe me tocaste.
Ou foi a tua sombra
que dançou
na minha sombra?
Podia ser de júbilo
a linha do teu rosto
quando soletraste
a rebeldia dos sonhos
e te fizeste errante.
Agora o sonho
é também o meu exílio.
E muito mais me perturba
o luto do olhar
do que a boca
ferida de silêncio.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

3.12.08

Da tua ausência

Rachel Giese

Voltarei sempre às paisagens da tua sombra
enfeitada de madressilvas.
Gravarei o teu nome em todas as árvores,
sem marginalizar as razões da tua ausência.
Cantarei palavras sem espessura,
como moinhos de vento,
ou o frágil sabor da chuva.
Dançarei contigo na periferia da manhã
e direi onde começa e acaba
o secreto destino do silêncio.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997