25.10.21

Estava sempre a sorrir

Ana Pires Livramento

Estava sempre a sorrir. 
Como se possuísse um código 
clandestino costurado na bainha 
dos lábios para esquecer 
o inútil ruído das mágoas. 
Consideravam-no tonto. 
Mas ele, sentado no degrau de pedra, 
desenhava no chão o silêncio 
de um tempo demorado 
onde se improvisam 
os pensamentos indefesos. 

Graça Pires 
Em A solidão é como o vento, 2020, p. 59


Se quiserem ouvir o poema dito pelo meu filho Pedro no vídeo da minha filha Ana podem fazê-lo aqui:
                                 https://youtu.be/FVTBMZKFzx0                         


18.10.21

Memórias de Isadora XIV

Sandro Botticelli

Vejo-me a decifrar os mitos. 

Os vasos gregos, lembro, 
mostravam bailarinas 
que imaginei dançando a meu lado. 
Depois tornei-as vivas, bailantes. 
Com elas aprendi a silenciar o corpo 
para que o grito fosse a espontânea 
rotação sobre o abismo. 

Também a primavera de botticelli 
me despertou angelicais movimentos. 
Cheguei a ficar horas a fio no assombro 
e no êxtase daquela imagem que fiz minha. 
O sagrado e o profano bailando no meu peito. 

Porque a dança era-me a divina expressão 
do espírito humano em direcção à luz. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 22

11.10.21

Em seara alheia



Vivo no batimento cardíaco 
de uma gaiola de refugiados. 

O novo século anunciava filigrana, 
gargantas sem alçapão, 
altruísmo de medula intacta. 
Recitava-se a amnésia das fronteiras, 
a livre circulação de candelabros na utopia 
e mentes capazes de respirar esculturas de Rodin. 

Atravesso a Europa vestida de arame farpado. 
Passo os meses à espera 
que o estio me dê um autógrafo. 

Vivemos tempos de Goya na boca, 
não pelo tráfego do deslumbramento, 
mas pela imagem sombria pendurada no palato. 
O terror sempre deu braçadas largas. 

Somos o lapso que nunca atinge o degelo.

Alberto Pereira
In: Neve interior. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2021, p. 36

4.10.21

Elas retêm múltiplas memórias

Solange Firmino


Elas retêm múltiplas memórias 
que definem a vida que lhes coube. 
Possuem, parado no olhar, 
o relevo onde cresceram as rosas 
que amaram até ao absurdo 
quando todas as privações 
se confundiram com o luto. 
Agora só querem contar, com detalhe, 
como sobrevivem ao vagar dos dias.

Graça Pires
De A solidão é como o vento, 2020, p. 42