26.9.22

No outono

Magdalena Russocka 

Um punhal certeiro como um aviso 
atinge o dia tombado 
sobre o melindre das folhas no outono. 
Na duração das noites, há árvores estéreis 
que naufragam com a chuva 
e deixam um alagado eco sobre a terra. 
A água escorre entre o alinhamento regular 
das oliveiras que aguardam o frio 
nos lugares onde a paisagem 
é um campo sem lavoura, 
sem searas, sem celeiros. 
Lugares onde se recolhem as formigas 
e a nostalgia das sementes. 
Lugares onde os beirais ficam vazios 
e, na cintura das mulheres, 
se quebram as lanças da paixão. 
Sinto em mim a ressonância calada da terra. 
Capto os sons do vento abraçando 
as árvores como um queixume. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 46

19.9.22

Uma tempestade no peito

aykut ydogdu

Emigro de mim. 
Nunca ignoro a geometria de agitadas águas 
visível nos seixos mais incertos, 
quando uso um pretexto de fuga 
para percorrer os mares abertos, 
costeiros, ligados à terra. 
Uma tempestade inusitada no peito 
decifra a cor indefinida das marcas digitais 
dos que tacteiam a estranheza dos barcos 
com nomes de mareantes 
impressos com sal e sangue. 
Aves marinhas cantam-me nos lábios 
estranhos sinais. 
Risco então em cartas geográficas 
o delírio dos mastros pressentido 
na minha voz navegante. 
Fixo-me às tábuas com nós de marinheiro 
e a carga do navio tem o peso do meu corpo. 
Depois de eu morrer haverá o rumor do meu olhar 
luzente sobre o mar mais intranquilo. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 43

12.9.22

Fala-me da tua infância

Cristina García Rodero

Fala-me da tua infância 
para que eu possa procurar a minha. 
Onde está o berço, a cambraia, 
a saliva na teia dos dedos? 
Diz-me, conta-me os lugares 
e os jogos da tua meninez. 
Quais as brincadeiras, 
os heróis, as teimas? 
Deixa-me partilhar contigo 
o cume da montanha 
onde te escondias, sem ruído, 
nos detalhes do horizonte. 
Permite que o manancial de teus olhos 
se derrame nos meus olhos, 
para que os dias não cubram de secura 
a memória da água. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 29

5.9.22

Em seara alheia



Não consigo explicar a poesia. Ela é água para a nossa sede. 
Ela agarra o céu e o mar. Ela nasce em mim como uma fonte, 
cujo caudal tenho de trabalhar. É um ofício de água. 
É um maravilhamento total. Não sei mais nada. 

Maria Teresa Dias Furtado 
In: Ofício da água. Lisboa: Poética, 2022, p. 27