27.9.21

Memórias de Isadora XIII



O bulício dos pés suspendia e alongava 
o alvoroço das pernas e dos braços, 
à altura de toda a fascinação. 

Pausadamente. 

Adequando o lentor do lanço ao espasmo, 
no seguimento de mim. 

E dançava. 
Incansavelmente dançava. 
No prodígio exacto de uma nostalgia 
tangível à imensidão do assombro 
quando me desagregava flutuando, 
ou sobre as tábuas me agitava como náufraga. 

De meus sortilégios mais nómadas 
tangi os fios do som para flutuar o vulto 
da alma, como se voasse em chamas. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 32

20.9.21

Levemente inclinado sobre os trevos

Ivan Sandorfi

Levemente inclinado sobre os trevos 
erguia a foice para avistar a seara, 
o celeiro e o pão sobre a mesa. 
Diante das árvores sem folhas 
curvava os ombros 
enquanto um súbito recolhimento 
lhe gretava o chão. 
Uma tarde o corpo dele fez-se sombra. 
E um arado o lavrou como se fosse terra. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 10

13.9.21

Dentro da boca



O rio passando 
    sem nunca correr. 


Não lembrar o rio,  
apenas a água 
prometida pela nascente. 

Deslizar um ávido olhar 
pela corrente sem margens, 
sem percurso, sem fundo nem fim

Água a escorrer lentamente 
dentro da boca. 
Puríssima. 

No enrouquecimento da voz. 

Graça Pires
In: Água Silêncio Sede: homenagem poética a Maria Judite de Carvalho no centenário do seu nascimento. Selecção e organização de Lília Tavares e Carlos Campos.  Braga: Poética, 2021, p. 76

6.9.21

Lamento



Olhem para nós. Ouçam-nos. 
Não somos vultos sem identidade.
Somos mulheres. 
Somos mães filhas irmãs amigas. 
Temos um nome. 
Indefesas frente ao terror 
é silencioso o lamento o grito o arrepio. 
Qualquer gesto nos pode destruir. 
Ficámos sem chão. 
Avistamos a montanha 
mas um deserto invisível 
acorrenta-nos os pés. 
O céu é um abismo. 
Onde estão as estrelas 
os anjos o nosso deus? 
Não. Não choramos. 
Temos o olhar parado nos livros proibidos
na inutilidade dos dias que hão-de vir 
nas palavras reprimidas
na mais indecifrável prece 
tão perto da descrença. 
Quem poderá salvar-nos? 

Graça Pires, Set. 2021