28.9.20

Com as unhas fincadas no vaso de barro

Federica Erra

Com as unhas fincadas no vaso de barro 
onde crescem as sardinheiras brancas, 
ela rememorou alguns poemas 
escritos em folhas de plátano 
quando o outono, em seu percurso, 
as dispersava nos caminhos. 
Eram de amor as palavras que escrevia. 
Palavras de sedução, 
transparentes como a água. 
Resvalando sobre o nome 
que lhe conturbou o sangue. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 11

21.9.20

Não quis falar do vinho



Não quis falar do vinho 
entornado sobre a mesa. 
O bordado da toalha 
escondia enigmas 
que só as mãos das mulheres 
sabem decifrar no resgate 
de um meticuloso nomadismo.  
O jantar estava excelente, 
disseram seus amigos, 
voltando a encher os copos. 
Um rumor de vindimas 
propagou-se pela sala. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 40

14.9.20

Em seara alheia



Amo pelas manhãs o interior da casa 
a calma pousada sobre as coisas 
os objectos poucos 
ou da tua pele as adormecidas ruas 
poema e cidade teu corpo 
quando lá fora só o sol 
bronze longínquo 
e a tua voz como o som da água 
podem ouvir-se iniciando o ciclo do mundo e dos dias rentes 
onde ainda nada fora tocado 

E há em tudo um primordial desígnio de fruto 
porque tu estás 
onde começa cada ruído da casa 

José Pedro Leite 
In: A construção dos lábios. Ilustrações de Inês Cardoso Marques. Braga: Poética, 2020, p. 21

7.9.20

O estranho retorno de um espanto


O estranho retorno de um espanto 
aconteceu-lhe muitas vezes. 
Mas nunca como naquele dia 
em que a luz foi mais intensa 
nos seus olhos de criança. 
Avistou-o ao longe, o seu gato, 
companheiro de todas as tropelias, 
que ficara na quinta dos avós 
quando mudou para a cidade. 
Ninguém sabe como enfrentou 
tanto atalho, tanto quebranto, 
tantos perigos para chegar ali, 
ao sítio onde morava o menino. 
E ele, o menino, afogou a sua mágoa 
nas felinas tonalidades do olhar de um gato 
a quem chamava “bonitinho” e era dele. 

Graça Pires 
A solidão é como o vento, 2020, p.58