31.5.07

Crianças

Gotthard Schuh

Mansamente aprendendo o tempo,
têm o espanto no rosto
e querem saber as sílabas encantadas,
o som dos barcos, os ninhos, o carrocel,
as cantigas de roda.
Com que sonhos lhes daremos
uma casa sem sustos,
ou a dispobibilidade das searas,
ou, tão só, uma palavra de amor,
que lhes permaneça na voz
pela vida fora?


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

30.5.07

O coração não tem margens

Robert Adams

Como se todas as coisas fossem possíveis,
mesmo o milagre de vozes solidárias e cúmplices
na teimosia de quem acredita na magia
de qualquer lonjura, sei, de súbito,
que o coração não tem margens:
é um mar frágil que submerge
os olhos desprevenidos do homem.


Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1993

29.5.07

Vem comigo

Robert Doisneau

Empurro, com gestos clandestinos,
o intervalo existente entre mim
e a sombra das tuas mãos.
Diz-me palavras insensatas,
para que eu percorra os segredos
escondidos no silêncio da tua voz.
Toca-me com lábios enlouquecidos.
Vem comigo.
Verás o halo inconfundível da poesia
celebrando paixões, arrasando nomes,
vigiando o começo da febre
nas terras onde maio é manso.
Deixa-me ser um peixe verde
no aquário, sem dimensões, do teu olhar.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

28.5.07

Em seara alheia




era apenas um retrato
que um fotógrafo de ocasião nos tirou
e tinha a história de não ter
história nenhuma
(já li uma frase assim no Alberto Caeiro
desculpa)

lembro-me: nem sequer olhávamos um para o outro
embora o fotógrafo se tivesse esforçado muito
em nos mostrar felizes
mas ele não podia adivinhar que a hora da partida
se desenhava no fumo dos cafés que bebíamos
ao som triste da Anne van der Lowe no jukebox
das gares onde adiávamos diariamente
os funestos rumores do esquecimento

talvez tivéssemos estremecido um pouco
e por isso os nossos rostos ficaram
levemente desfocados
como se naquele momento tivéssemos encontrado
a mais eficaz palavra
de despedida.
Alice Vieira
In: Dois corpos tombando na água. Lisboa : Caminho, 2007

27.5.07

Para aprender a voar

Raul Touzon

Para aprender a voar nos bastava
o começo e o fim
de uma linguagem pessoal,
em que as mãos, impacientes,
despissem a paisagem
e, apenas por um instante,
se tornassem asas.

Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

25.5.07

O colo côncavo de afectos



Antecipo o sobressalto de um estio antigo.
Vislumbro uma casa para agasalhar a infância.
As paredes repletas de lembranças.
A mãe : o colo côncavo de afectos.
Labirinto alagado de ternura
no alvoroço da memória.
Águia azul na linguagem dos precipícios.
Limite entre a sede
e a limpidez de qualquer fonte.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

24.5.07

No meio das palavras

Luciana Abait
Quando, nos lábios, começa um continente,
suspenso no apelo líquido dos beijos,
há um barco que cresce nos meus olhos
e, entre búzios verdes, escrevo água.

Nunca a brisa se demora entre as dunas,
onde os barcos navegam sobre a espuma.

Tudo é secreto, se maio se repete
nas marcas da pureza recusada.

Um rosto ou um rio me fascinam,
quando a raiva e o sossego
me revelam a nascente
e, no meio das palavras,
procuro apenas um gesto
ou uma sombra.

De Poemas, 1990

23.5.07

Meme (*)

Cartier-Bresson


A felicidade é um projecto de inconformismo.
Fernando Savater


Este desafio foi-me colocado pela Menina Marota
e apesar da minha experiência no blogosfera ser recente, não vou quebrar esta corrente e passo a palavra a Maria Costa, Paula Raposo, Alexandre Bonafim, Mafalda , Teresa Durães porque estes são espaços que eu também gosto de visitar.
(*) Um "meme" é um "gen ou gene cultural" que envolve algum conhecimento que passas a outros contemporâneos ou a teus descendentes. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma. Simplificando: é um comentário, uma frase, uma ideia que rapidamente é propagada pela Web, usualmente por meio de blogues. O neologismo "memes" foi criado por Richard Dawkins, autor de O Gene Egoísta, dada a sua semelhança fonética com o termo "genes".

22.5.07

Pelo interior do mito

Duncan C. Clark


Os veleiros aproximam-se dos portos
pelo interior do mito. Um perfume nocturno,
impregnado de limos, devolve-me as palavras
que sobrevivem ao desapego dos braços.
Quando os barcos, fatigados das marés,
já me adormeciam no olhar, falaste-me
do mar intranquilo no teu peito e dos veleiros
amarrados nos teus pulsos.

De Uma certa forma de errância, 2003

21.5.07

Em seara alheia


turvam-se os olhos no amor
como se turvam
na morte

há uma luz
que treme
e que se apaga
rendida à sensação
mais forte

ama-se
morre-se
tão simplesmente

no amor
como na morte
é tudo
uma questão de tempo
uma questão de sorte


Y. K. Centeno
In Perto da terra. Lisboa, Presença, 1984

20.5.07

Apenas um momento


Quando a véspera
do mais prolongado sossego
me fere a solidão da infância
quero um momento,
apenas um momento,
para que o excesso de luz a prumo
amotine as palavras nos meus lábios
e as confunda com a quietude
urgente da paisagem.
De pulsos iluminados
poiso a voz no fundo da tristeza,
para expor a voz de outrora:
no dia mais bonito que vier irei,
sem rumo algum, ao deus-dará,
procurar um lugar para morrer,
as vezes que eu quiser, até nascer sem dor.

De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

16.5.07

Tão plural como o silêncio

Amedeo Modigliani
Jejuei sob o nome das coisas desejadas,
com a boca presa aos resíduos do medo
na secura dos olhos.
Herdei a nomenclatura dos vadios
e fico onde não sei,
à procura de tudo e de nada.
Apátrida. Sem rota. Terra ocupada.
O meu poema não cabe nesta angústia
de ter nos pés o funambulismo
litigioso dos sonhos.
Sobrevivo a todas as memórias,
mesmo às que definham no rosto dos velhos.
E a minha voz tornou-se tão plural como o silêncio.

De Labirintos, 1997

15.5.07

A noite é a sombra de um pássaro

Duncan C. Clark
A noite é a sombra de um pássaro
que procura o mar em voo raso.
Às vezes, rasga as margens do pudor,
em erótica incursão, e me deslumbra,
e me perturba, e se transforma na porta aberta,
por onde deserto de uma guerrilha interior,
para exorcizar a ruína da lua nos meus braços.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1977

13.5.07

Uma história com ondas e marés



Na concha mais débil se adivinha
uma história com ondas e marés,
quando a sombra de um mar
perturba a cor dos olhos
e povoa de barcos a respiração.
A voz, agrafada na revolta íntima
das fragas, estende uma paisagem
para o lado liberto da noite,
onde as luas se pressentem,
excessivas como as paixões.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1977

10.5.07

Como silenciar as mãos?

André Kertész

Perturbada pelo desacato das emoções,
utilizo um roteiro de artifícios
para simular, em cada madrugada,
a cumplicidade dos deuses.
Mas, como silenciar as mãos que dobam
a brisa da manhã, no vórtice do tempo ?
Não iludo a distância.
É devagar que olho para trás,
à procura de mim.
Cada vinco do rosto, é um caminho
onde a angústia se deteve.

Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

9.5.07

A curva de um rio

Pascal Renoux

Sem pressa, os braços
desenham o mais liso gesto
para exilar abraços.
Cavo, então, no peito uma nascente
para que o deserto não avance sobre a boca.
A curva de um rio a bater-me no rosto.

8.5.07

Aquela rosa branca


Escuta estes cânticos de maio
a espreitar a cidade
e traz-me, outra vez,
aquela rosa branca
desenhada nos teus ombros,
para que eu a exiba no penteado.
O prazer perturba os deuses

e devolve-nos um aroma da infância:
leite morno vertido sobre a pele.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

7.5.07

Em seara alheia



Ela levantou o joelho direito por entre as tuas coxas
escreveu-te a boca com o húmido sal da manhã
como se fosse uma deusa inesperada e furiosa

e cercou-te com a noite da última parede do labirinto.
Tu tinhas a dor erguida e os olhos choravam.
Chovia por entre as rochas e explodia-te nos rins

a cegueira que a olhava: dura e trémula.
Se fosses morrer logo a seguir a neve
não cairia dessa forma sobre a praia e o mundo.

mas tu morrias agora, ó amante no escuro do dia então.


Manuel GusmãoIn Mapas o assombro a sombra. Lisboa : Caminho, 2005

6.5.07

Quando maio chegou contigo


Para a minha filha Ana Isabel


Queres saber o quê, minha filha?
É que não encontro respostas
para as tuas questões.
Uma mãe não hesita. Não é negligente.
Usa sábias e vigilantes palavras.
Isto deve ser verdade.
Mas quando maio chegou contigo,
nenhuma sombra me avisou
do ansioso brilho dos teus olhos.
E agora ?


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

5.5.07

A mãe

Balthus

Adivinhar, no teu rosto, o rio da infância
e deslizar, em deslumbradas canoas,
pelo sal dos teus olhos.

Afaga os meus cabelos, mãe
para que, a palavra
crescer,
não doa, de novo, nos meus passos.
Deixa-me ver, na tua pele,
as linhas do silêncio,
com que teceste a coragem
e os sonhos : a parte da tua herança
que, legitimamente, me cabe.


Graça Pires
De Ortografia do olhar, 1996

4.5.07

O nomadismo dos afectos

Donna Geissler

Articulo-me nas convenções quotidianas.
Nota-se, no meu andar,
o nomadismo dos afectos.
Dédalo construíu o labirinto ao meu redor,
como um anel de silêncios.
Agora, tenho nos pés
o fantasma de um marinheiro

enlouquecido pelo som dos búzios.

Graça Pires
De Labirintos, 1997

3.5.07

Vamos falar de poesia




Não podemos saltar por cima da nossa própria sombra.
Poderá fazê-lo a poesia?

George Steiner
In Gramáticas da Criação.Lisboa:Relógio d'Água, 2002

2.5.07

Exausta de esperar



Exausta de esperar, descanso o olhar
na silhueta de veleiros pintados de negro.
Depois, desenho, em minha insónia, um pássaro,
que me sobrevoe a infância, hasteando,
bem por dentro da meninice, um rosto paterno,
para que a boca me não sangre de orfandade.

Naufragaste numa noite
em que o brilho da lua adormeceu
e deixaste-me uma ilha por herança.


Graça Pires
De Uma certa forma de errância, 2003

1.5.07

Ninguém me viu

Alfredo Cunha
Ninguém me viu
mas, na multidão,
era indelével
o meu vulto
atento à vida
como um sonho aceso
e no meu rosto
havia uma bandeira colorida
mas ninguém me viu,
muda de mágoa,
placenta das palavras que gerei
no aceno dos meus braços.
Ninguém me viu
e os meus passos
soavam a loucura
ao ritmo de um verso
e no meu olhar
estava impressa a solidão
mas ninguém me viu.

Graça Pires
De Poemas, 1990