18.3.24

O imenso silêncio dentro de mim

A convite da Amiga Rosélia

                                                            

Procuro o lugar onde começa o silêncio. 
O silêncio transparente do mar, 
dos barcos ao longe, da sombra dos mastros, 
do brilho dos búzios. 
O silêncio das sementes, 
da melancolia das árvores, 
do restolho do trigo, do afago da terra. 

O imenso silêncio dentro de mim,
na ansiedade das palavras distantes,
quando, sem aviso, ele se afunda
no meu peito insensatamente,
como se fora um vício antigo
transfigurando as sílabas.
Como se uma inesperada sedução
cristalizasse os poemas que escrevo
de dentes cerrados, cativando a voz.
Como se a linguagem se evadisse
na incompletude dos sonhos.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021

11.3.24

Em seara alheia

 


Oração em pleno voo

Sem sequer pensar
Eu ascendo os degraus
E lanço-me aos céus
E no meu voo nem seguro os cabelos
Que se soltam ligeiros
Como flâmulas
Entre a amenidade das flores
E o aroma dos frutos outonais

Ao subir
A paz e a esperança invadem-me
E deparo com campos de trigais
E cores multicores
No devaneio impensado
Solta-se da boca um beijo
Rasgando os céus

Sei que na minha oração
Uma luz celestial
Tão cândida e serena como
O meu rosto
Se projectará
Nos confins do universo

Amanhã não sei dos voos
Porque só o hoje prevalece

©Piedade Araújo Sol
In:
Olhares em tons de maresia, 2013-11-05

4.3.24

Rumo ao sul

Aglayan Agac

                                                                                                            
                                                                                                        Para a Lília Tavares

Fascinada por árvores antigas 
escreveste um livro 
e fizeste de cada folha uma jangada. 

Num desvio da noite 
quando a brisa 
agitava devagar as glicínias 
fugiste rumo ao sul 
com a escuridão a perseguir-te. 
Um sopro salgado dava a todo o percurso 
um abraço marinho. 

Gritaste todos os termos náuticos. 
A força dos braços ganhou 
a firmeza das tábuas. 
Atravessaste as vagas com a fúria 
dos que enconcham as mãos 
para refúgio da pérola perfeita. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 31

26.2.24

A sugestão de uma reza

Hervé Martijn


No lado mais vulnerável da noite, onde me perco,
sei que perto de um abismo se pode enlouquecer. 
Assumo o risco de cada improviso, 
desarmada perante as minhas próprias vertigens. 
Numa viagem interior, num recolhimento, 
regresso a mim própria, asfixiada pelos poros do tempo. 
A sugestão de uma reza ajuda-me a aceitar 
o peso do vazio de cada instante 
exposto à promessa de uma aventura, 
para que eu não sucumba no lodo que me cerca. 
Unidas, as mãos preservam 
a feição das preces mais singelas, 
à espera que a vida passe 
sem melindrar o rosto das palavras. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 34

19.2.24

Até ao tumulto de um grito




Prolongo o silêncio 
até ao tumulto de um grito 
de um choro 
de uma desnorteada multidão. 
Plano inclinado da voz 
onde resvala o ruído do mundo 
dilatado por sons anónimos. 
Qualquer pausa reitera 
o murmúrio mudo do verbo. 
Sem história. 
Tão próxima do presságio de um rosto. 
Ou da ferida que a si mesma se rasga. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 47

12.2.24

Em seara alheia

 



12 

Sobre o corpo
uma azáfama de abelhas

Falta ainda um pouco mais
para a epopeia das mãos

Urge esperar
que se ateiem de lume as últimas sombras
que invada a tarde 
a fúria do feno
despidamente
e que venham as línguas do fogo
percorrer os veios da mais antiga pedra

que caia a prumo o desejo sobre um mar de vidro
que more o coração no azulado dorso de um pássaro

que apenas possamos chamar-nos
por qualquer uma daquelas palavras
ardentes 
anunciadoras do Verão

José Pedro Leite
In: Manual de relentos: I-Explicação dos incêndios. Lisboa: Poética, 2023, p. 20

5.2.24

Para além das penas

Duy Huynh


                                                                                        Para a Solange Firmino
De improviso riscas no ar 
o absoluto equilíbrio 
dos pássaros entontecidos 
pela precisão do voo. 

Pressentes seu gozo 
num eco de asas 
abertas ao infinito 
onde a noite se liberta 
e em cintilação se renova. 

Queres voar assim 
do cume dos sonhos. 
Para além das penas. 
Para além da vertigem. 
Inocente de súbito.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 16

                  Quem quiser ouvir o poema dito pelo Pedro pode fazê-lo aqui:
                  https://youtu.be/CQNM_J1xg_I?list=UULFp1MkC4fuxOs5HDyHVNGN-A

                                                                

                                

29.1.24

Retomo o monólogo

Ana Pires Livramento


Com a voz a embater no adro da vida, 
retomo o monólogo em linguagem 
dispersa vinculada à emoção. 
Há lembranças embutidas nas pedras 
cobertas de musgo que assinalam 
esconderijos improváveis onde aceito ser, 
duplamente, a silhueta de um corpo 
e o barro inquieto por dentro dos sonhos. 
Amarro os pulsos nas árvores em flor 
para atrair os insectos e os pássaros, 
com a urgência do verão no tear das seduções. 
Imprudentes, as mãos deixam-se doer 
escondidas nas sombras 
com os dedos curvos de cansaço. 
Protagonista do meu destino, 
não cesso de nascer, 
acendida no sangue das manhãs. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.76

22.1.24

Canto baixinho

Whitney Hayward


Observo atentamente o que me circunda: 
as folhas secas coladas no desvão 
do telhado por um vento impaciente 
o alarido dos pardais a romper 
o silêncio dos mais dispersos carreiros 
o brilho da manhã quase austero 
de tão límpido a espalhar-se na planura 
a beira dos caminhos alagada de sombras 
como um excesso fresco agarrado à pele. 

E canto baixinho, com o som amarrado 
na garganta onde as palavras 
quase morrem sob a língua. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 17

15.1.24

Como se voasse entre luas

The Daily Diges


Como se voasse entre luas, 
entoo cânticos em clandestina devoção 
e recrio uma tocha luminosa 
para me baptizar outra vez, 
à tona da claridade, no lume das águas. 
Diante de flores tardias, 
o meu nome desarticula-se 
em cores inesperadas 
e sei que a infância 
fica cada vez mais distante. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 71

8.1.24

Em seara alheia


Signos do deserto

O deserto diz
com simplicidade
a luz
o ângulo
de cada grão
de arreia

Abre a mão límpida
sobre a página branca

O deserto grita
ao nomear-se
pelo próprio vazio

Alexandre Bonafim
In: O anjo entre o deserto e o não. São Paulo: Terra Redonda. 2022, p. 21

3.1.24

A luz da madrugada

                                                                         Branco Cardoso

                                     Para a Carmo Baião

Nem oração nem lamento. 

Apenas a luz da madrugada 
que a madrugada espalha 
sobre a giesta o tojo a esteva 
nas planícies onde o verde e o ouro 
se fundiram e a paisagem se ajustou 
à expressão das mulheres 
em delírio em parto em quebranto 

Para além do tumulto da memória 
a claridade dos trigais em teu olhar 
tem o ímpeto do sol nas leiras. 

E as casas caiadas de branco 
guardam o silêncio que lateja em tua voz 
onde não consentiste nunca 
a inutilidade de palavras escusadas. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 38

11.12.23

Interação Fraterna de Natal 2023

       A convite da Amiga Rosélia aqui deixo a minha participação  nesta fraterna interacão de Natal





Escutamos a palavra Natal
e com o coração ausente de sombras 
deciframos suplicantes 
o ritual de dezembro. 
Um intenso espaço de luz 
resplandece em prece sobre a terra
como dádiva sobrenatural.
É o anjo que anuncia o Menino do Presépio.
São anjos de paz a abençoar o mundo. 

Graça Pires 
Natal 2023

Quero palavras brancas como asas de anjos
para convocar neste Natal a promessa 
de uma Luz de Paz e Amor.
Quero para todos um ano de 2024 MELHOR.

Até para o ano.

4.12.23

Tudo é breve

Monia Merlo


A cada pulsação 
perdura a inicial certeza 
de que tudo é breve. 

Se trocarmos os pés 
a deriva será o único caminho 
porque sabemos de aves cegas 
que trazem no voo 
o mapa incerto dos ventos. 

Por isso alinhamos os dias 
com a respiração. 
E escolhemos o silêncio 
para nomear as flores 
e partilhar o enigma branco 
das boninas no hora do crepúsculo. 

E deixamos deslizar a meia-luz 
no ângulo do olhar tão subornado 
pela trama dos momentos 
que nos legitimam a existência. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 20

27.11.23

Em seara alheia



Onde nasce o silêncio 

Quando se abriga na memória dos barcos, 
na superfície inquieta do mar 
e sobrevive na plenitude dos mastros. 

Quando se aprende a não perder o rumo 
no momento em que rema, 
assim que as aves fugazes 
sopram segredos da noite dolorida. 
Aí mora o silêncio. 

Quem está distante da infância se guia pelas marés, 
ouve de longe o timbre de sua voz nas águas, 
clamando o próprio nome 
nas viagens incertas dos marinheiros. 

Na solidão da paisagem, 
quando há algum naufrágio, 
sempre volta a novembro, 
onde vê a criança que foi. 

Solange Firmino, 22 Nov. 2023 

Este poema foi-me oferecido pela minha Amiga do Brasil, Solange Firmino, no dia do meu aniversário. Muito obrigada, Solange

20.11.23

Um dia de novembro

Ana Pires Livramento


Uma premonição envolve em mistério
a manhã de nevoeiro de um dia de novembro
e desperta na lembrança os caminhos da inocência.
Em passo lento, em via-sacra,
assisto calada à passagem de mim.
O princípio e o fim dos caminhos
desvendam, no código dos ventos,
em rigoroso segredo, o meu perfil,
a moldar as vertentes que me são voragem
e ofício no interior dos dias.
Pretendo um idioma insensato
para me definir ou pronunciar o meu nome.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 63

13.11.23

Bebo a própria sede

Michael Bilotta


Volto às palavras resguardadas no útero dos sonhos. 
Uma caligrafia exasperada quer ofuscar o brilho 
em meus olhos, exaustos de procurar 
a estrela d’alva no infinito do amanhecer. 
Dobro-me sobre as páginas em que me escrevo. 
Como se fora uma serpente, rastejo as letras 
com sílabas átonas para não desfocar a minha voz, 
quase ilícita, quando me refugio na paisagem 
para habitar as múltiplas geografias das sedes eternas. 
Bebo a tragos longos a própria sede e choro a tristeza 
extenuada de qualquer melancolia distante. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 55

6.11.23

Nenhuma palavra

Moisés Saman


Nenhuma palavra destrói um grito mudo 
um silenciamento em desamparo 
um muro farpado com arame 
uma chocante perfídia humana. 

Tentamos decifrar gestos confusos 
na turbulência de mãos intermináveis 
que enfrentam tormentas 
com o olhar cheio de cegueira 
à procura de um deus no suor da morte. 

Nenhuma palavra circunscreve o medo 
de olhares indefesos a pairar 
sobre uma paisagem impessoal. 
Nenhuma palavra redime as sombras 
dispersas no sangue de quem conhece 
o chicote da frieza e busca um ponto 
de fuga para agarrar a vida. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023. p.59

30.10.23

Nítidas lágrimas





Como se um aviso de luz me purificasse,
reconheço o meu vulto na ortografia
de nítidas lágrimas onde encontro
de permeio a vida inteira
e me busco cheia de abismo,
cheia de noite, cheia de labirintos,
cheia de palavras imperfeitas.
Talvez ninguém conheça a violência
da luz ao longo do rosto,
quando as lágrimas deslizam
em pequenas gotas sobre a pele.
A forma oculta do choro faz entornar
o hálito num estranho vazio.
A ferir a indecisão do brilho molhado.
A naufragar os olhos tão inundados de vento.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 70

23.10.23

Oferenda

Manuela Barroso

                                                                                          
                                                                                                     Para a Manuela Barroso

Abres as portadas. 
Um brilho na floração do jardim 
que o amanho dos canteiros harmoniza 
expõe o teu olhar à contemplação da luz 
a fixar em cada flor o movimento do sol. 

O aroma da seiva alenta-te o dia que começa. 
O fluxo do sangue como uma oferenda. 
Improvisas uma oração. 

E procuras a trama verde das sombras
para amar a folhagem de árvores frondosas: 
floresta furtiva paisagem mágica 
presença divina abrigando os ventos. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 23

16.10.23

Entre ruínas



Pressentir a morte na desmesura de uma afronta 
na opressão interminável de cada rua queimada 
de cada disparo de cada cerco de cada agressão. 

A revolta presa na arma do terror. 
A coragem engatilhada nas mãos. 
O susto das sirenes no rosto dos filhos 
e na correria angustiada das mães. 
O clamor sufocado nas lágrimas 
e no sangue a quem dói violentamente 
o exílio do chão onde nasceram. 
A exaustão a golpear o corpo. 
A força do silêncio a ensurdecer o grito. 

Sem tréguas sem resgate sem sujeição 
hão-de abraçar-se fortemente entre as ruínas.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 64

9.10.23

Para me sagrar de silêncio

Ana Pires Livramento


Na linha de qualquer rio passaram águas 
que deixaram mais sedentos 
os lábios e a garganta. 
Cada detalhe de versos 
sem horizontes líquidos 
risca-me na pele o fracasso da voz 
desarticulando a paisagem. 
Rojo-me sobre os nomes que não esqueço, 
na imensa possibilidade de os tornar legítimos 
na precária imortalidade dos dias. 
Invento horas extras para me sagrar de silêncio. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 55

25.9.23

Nomes sem eco



Sangram nomes dispersos 
em bocas invadidas por aves migratórias. 
Nomes sem eco em infindáveis viagens. 
Caminhantes multiplamente estrangeiros 
submersos em cansaço 
com a fuga a latejar no olhar. 

O ritmo dos passos 
segue com lentidão o som do vento 
no fio da indiferença 
que goteja sobre as cidades agrestes 
com esquinas irregulares 
sem abrigo algum. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 50

18.9.23

Em seara alheia




20200416 - Num bairro moderno 

Hoje fui passear o cão 
Da melancolia. Saí. Não 
Aguentava já o surdo 
Latir do vírus, o vagir 
Da morte lenta nos ecrãs 
Das reportagens repetidas 
Do sofrimento que sempre vem 
Da natureza sempre cruel 
Digam lá o que disserem 
Os cantares da passarada 
Precipitando a primavera 
Nos líricos beirais. Hoje 
Fui de cão. Não há outro 
A que dar trela. 

Jorge Fazenda Lourenço 
In: Fim de boca e mais poemas (1981-2023). Lages do Pico: Companhia das Ilhas, 2023, 
p. 273

11.9.23

Dos desejos

Noell S. Oszvald 

Enfrentamos o rosto ansioso dos desejos 
com o enigma da posse 
no limite de cada gesto. 

Inquietos falamos longamente 
até a lentidão das mãos 
insubmissas nos perturbar. 
Até recolhermos nas palavras caladas 
a seda dos murmúrios. 
Até que se solte o rio já sem margens 
tão dono de seu júbilo. 

Pode ser nosso o ofício da ternura. 
É minha a ânfora da sede.

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 24

4.9.23

Uma luz indecifrável

Masha Raymers

Enquanto os meus passos 
tecem a sua teia pelo chão, 
neles se envolve, 
em desacertada simetria, 
o esquivo jeito das mãos, 
como se a febre dos gestos 
habitasse um desorientado tumulto, 
em busca de um silêncio 
que esboça o avanço dos dias 
com agudíssimos dedos. 
Estranha de mim, 
alienada à intuição de um recato, 
dramatizo o mais íntimo som das contradições. 
Subverto a linguagem do assombro 
num conflito insubornável. 
Amarrada às sílabas, 
roço a língua nas pedras 
para inflamar as palavras. 
Utilizo a minha biografia 
para sangrar o subtil veneno 
com que entreteço as sombras. 
Em meu redor, uma luz indecifrável 
alastra sobre os sentidos, 
sobre o interior da voz, 
devassando a vigília dos nomes 
que se me ajustam. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 12

14.8.23

Tão longe

                                                                       Michael Bilotta 


Tão longe inalcançável quase 
o tempo das palavras imprevistas 
inteiras insensatas transgressoras. 

Palavras presas aos dias 
em que era possível nomear 
tudo e nada com a urgência 
e a nostalgia do futuro. 

Um rastilho de sons 
detonava em minha voz 
como um desatino primitivo 
a relegar o silêncio 
numa avidez envolta na saliva 
em busca da água original. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 34


Volto em Setembro. Desejo a todas as minhas amigas e a todos os meus amigos dias cheios de paz e amor.

7.8.23

Deixem-me só

 
Kamille Corry   

                                                                                 
                                                                                                    
                                                                                                      Para a Graça Neto
Deixem-me só. 
Quero chorar como se me doesse 
o joelho esfolado no jogo da bola 
quando quase nada mais tinha para chorar. 
Quero tapar a cara para rir à gargalhada 
do pavor que a escuridão me causava 
quando quase nada mais me assustava. 

Deixem-me só. 
Porque agora não há pássaros silvestres 
a conceber em seu gorjeio o colo carinhoso 
onde me aninhava na hora da brincadeira 

e são de queixume as sombras 
que me assustam quando a periferia da noite 
declina sobre os meus medos.

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 19

31.7.23

Em seara alheia

 


Na teia frágil dos dias 

Não deixes que a tua voz se cale 
antes de ser eco. 
Não deixes que a magia desvaneça. 
Que nada na vida se interrompa 
antes que aconteça. 
Que nenhuma luz se extinga 
enquanto os olhos a pedirem. 
Que nenhuma carícia se perca 
antes das mãos entardecerem. 
Porque tudo o que acontece 
na teia frágil dos dias 
se esgota num imprevisível instante, 
num golpe de vento 
ou no rasgão fugidio de um poema. 

Albino Santos 
In: Poliedro. Viseu: Seda Publicações, 2023. p. 71

24.7.23

Veio de água

Silena Lambertini 


                                                                 Para Victor Oliveira Mateus

Ele esquecia o desacerto do pensamento 
anterior às palavras todas que escreveu. 

Declinava o eco dos nomes 
das vozes das mortes dos sustos. 

Deixava-se perturbar pelo murmúrio 
quase calado do veio de água 
sangrando a surdina 
de um rio nascente: 
boca e fonte 
tão mútuas da vertigem 
que antecipa a sede 
justificada na raiz íntima do verbo. 

Era a anunciação de um poema: 
fogo e lágrima lâmina e mel 
espaço onde o voo começa. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p.25

17.7.23

O tempo que passa

 

Nikolay Tikhomirov


E, no entanto, muda a direcção dos ventos. 
As mãos rondam os gestos. 
A lisura das horas segue o rumo de chronos. 
Um descuido na confluência de ruas
sem retorno arde sob os pés. 
São lugares improváveis onde se chega sem guia, 
só pela ocasionalidade de tudo, só pelo cheiro, 
só pelas lajes com arestas arredondadas. 
Um laço de ferro vem ancorar no peito as marcas 
que alarmam o tempo que passa, 
registado por relógios sem ponteiros, 
a alagar de suor hábitos antigos, 
como uma cilada ou um cutelo 
fendendo os dias tão breves. 
Com minhas mãos povoadas de acenos, 
toco a face intocável das memórias. 
E escrevo. Escrevo a síntese de íntimos silêncios 
para que não se banalize a minha voz diferida. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui. 2012, p. 33

10.7.23

Em seara alheia



A carta 

Um homem escreve uma carta a uma mulher 
como se fosse um acto antigo 
O homem escolheu o mais terno papel rosa 
e sobrescrito a condizer _ com cantos violeta 
nele escreveu o nome da mulher 
e o lugar de destino 
O homem carregou de tinta azul a sua estimada 
e bela caneta que estava muda desde 
quando disse a última carta 
Escreveu a data na primeira linha 
o dia registado _ seminal 
com letras maiores escreveu no meio da página 
     Amo-te, tenho saudades 
na última linha, o homem assinou apenas 
com o seu primeiro nome 
O homem guardou a carta no sobrescrito 
que não colou _ beijou-o duas vezes 
e encostou-o à jarra onde tinha as flores 
que amanhã levaria para depositar 
no lugar inscrito a seguir ao nome da mulher 
Depois deitou-se para dormir e sonhar 
como fazia todos os anos. 

Luís Raimundo Rodrigues 
In: No espaço da minha boca. Edições Gato Cinzento, 2023, p. 92