26.3.23

Mãe

Laura Makabresku

Porque hoje seria  o aniversário da minha Mãe

Espalho nas palavras as pétalas 
daquela flor que dentro das tuas mãos 
se fez terra e seiva ferimento e luz. 

Agora mãe os pássaros vêm beber 
nos meus olhos as lágrimas tão raras 
que consentiste nos teus olhos
habituados a um rio interior preso no peito 
onde banhaste os filhos para que soubessem 
a origem redentora das águas. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 35

19.3.23

Um poema para o Dia Mundial da Poesia

A convite da Amiga Rosélia aqui deixo a minha participação


Nas pontas dos dedos, 
uma insubmissa escrita teima 
na promessa de um poema 
com sílabas luminosas. 
Escrevo silenciosos vocábulos, 
agora que a poesia se detém 
no fingimento de entrelinhas, 
soletrando a febre nos lábios. 
Podem dizer de mim 
que nunca me cansei das palavras 
porque foi com elas que me aprendi inteira. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 56

12.3.23

CONVITE - O IMPROVISO DE VIVER

Foi uma festa de Poesia muito bonita. Muito obrigada a todas e a todos os que estiveram lá. Obrigada aos que quiseram ir mas não puderam. Foi um final de tarde feliz. Bem-hajam.


O livro está em pré-venda até ao dia 17, através da ligação

Às minha Amigas e aos meus Amigos, a todos os que gostam da minha poesia convido para a partilha desta minha festa.
Deixo um poema do livro:

Todos falavam disso

 

Houve quem dissesse que voava

sobre a casa onde nasceu para ver o mar.

 

Causava estranheza o intenso brilho

a demorar-se-lhe no olhar

no instante poente dos fins de tarde.

 

Todos falavam disso.

 

Nem uma palavra foi dita sobre o bando de aves

que sobrevoava a casa em voo brando

com cristais-de-rocha no esquisso das penas.


Graça Pires


6.3.23

Pandora

Walter Crane

De múltiplos espelhos emergiu a fêmea. 
Divina e humana. 
Estratagema de zeus para ser perverso, 
no tempo em que os homens 
e os deuses se divertiam juntos. 
Era irrelevante acorrentar-lhe os pulsos. 
Suas mãos eram aves 
ansiosas de voos ousados. 
Os ventos, deslumbrados, 
soltaram a luz e a sombra 
em seus dedos que, sem pudor, 
destaparam o vaso da inocência. 
A palavra culpada enroscou-se-lhe 
no corpo como um estigma sem fim. 
E apenas bem no fundo dos seus olhos 
permaneceu, para sempre, a esperança 
de ser salva ou de salvar. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 30

Apesar de se tratar de um mito esta é a minha homenagem a todas as mulheres.

27.2.23

Procuro o lugar onde começa o silêncio

William Turner


Procuro o lugar onde começa o silêncio.
O silêncio das montanhas azuis,
da neve, das planícies eternas,
das glicínias, do vinho maduro,
da música de schubert,
do coração dos pássaros,
da fulguração da alba,
dos crepúsculos de william turner,
das sombras, dos retratos,
das abelhas entontecidas de pólen.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 60

20.2.23

Em seara alheia



Houve um tempo 
em que a palavra amor, 
imensa de promessas, 
morava na boca dos poetas. 

Houve um tempo 
em que o pranto habitava 
o olhar das mulheres com a ruína na voz. 

Houve um tempo 
em que as pedras 
tinham o rebordo da morte. 

Carmo Baião 
In: Sabemos que as pedras têm alma. Carnaxide: Cordel d'Prata, 2022, p. 15

13.2.23

Na véspera dos segredos

Laura Makabresku

Não omito os prometimentos 
entranhados na carne e no sangue 
na véspera dos segredos. 
Não esqueço as noites 
em que o desejo doía tanto 
quanto a incontida alegria 
de um abraço. 

Intermitente, o coração procura no amor o batimento certo.


Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021

6.2.23

Perto da criação do mundo

Ana Pires Livramento


                   
                         Para a minha irmã Teresa e para o meu irmão Zé Pires

Era a quinta dos avós. 
Nós eramos crianças 
e subíamos às figueiras. 
As pernas aprendiam o equilíbrio. 
A vertigem da queda a oscilar no corpo. 
Chegávamos aos frutos pelo cheiro. 
A boca antes das mãos a lamber o mel. 
A respiração tão apressada 
como um tumulto de pássaros. 

Num jogo para lá do tempo. 
Perto da criação do mundo. 

Graça Pires 
Do livro O improviso de viver, a ser publicado em março deste ano.

30.1.23

Para que a verdade se mostre inteira

Katia Chausheva

Um pretérito desafio deambula 
por dentro dos sentidos 
e desenha um espaço sagrado 
anterior a um horizonte esvaído no olhar. 
Cerro os olhos 
para que a verdade se mostre inteira. 
Quero o código secreto do encantamento 
que a memória guarda. 
Quero o pórtico litúrgico 
atravessado por antígona 
com a precisão e o decoro 
de quem se reivindica 
herdeira da luz e das sombras ancestrais, 
de quem atenua a distância entre o grito 
e o silêncio de uma desarmonia interior. 
Fantasmas exigem, em uníssono, 
o sangue inocente. 
Ai, a fragilidade da vida na ara dos sacrifícios! 
Ai, o puro instante de um nome fraterno 
abrasando a alma! 
Ai, a coragem aflita desta punição indefesa!

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 32


23.1.23

Estão a caminho do mar

Henri Cartier-Bresson

Estão a caminho do mar 
as mulheres vestidas de luto. 
Souberam da tormenta 
pela imensa salinidade dos lábios. 
Têm uma quilha enterrada no peito.  
E querem ser aves de sal e vento. 
E vão, dizem, acender as estrelas 
que guiam os marinheiros 
na aflição das noites intermináveis. 
O destemor tão perto da loucura! 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.39

Se alguém quiser ouvir o poema dito pela minha filha Ana pode fazê-lo aqui:
                                    
                                                    https://youtu.be/Z3CngT426fk

16.1.23

Ajoelho-me na terra

Katia Chausheva 

Ajoelho-me na terra, vulnerável e insubmissa. 
Perto do chão há gritos aferrados à vida e à morte. 
Há partos e perdas dolorosas. 
Há o urgente fôlego de cada nascente junto às pedras 
com nervuras de erosão e luz 
a depurar o reflexo da água. 
Há flores e bichos. 
Há raízes de árvores e de plantas e musgo 
e alfazema e cardos e fenos. 
Há campos repousando do cansaço da terra. 
Perto do chão onde me ajoelho, 
há o reino subterrâneo da noite 
em conflito tenso com o dia, 
numa dialéctica posta à prova por olhares videntes. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 27

9.1.23

Em seara alheia





Litorânea II 

As ondas revolvem os barcos dispersados pelo vento 
para possíveis futuros 
(todos breves momentos). 
Ela ouve as sereias que não cantam, apenas cochicham. 
O mar será eternamente uma grandeza que a desarma. 
Na maré, um pássaro morre, 
no momento em que outro voa 
em direção ao horizonte frágil. 
Involuntariamente, na sua distância, este recebe o verão. 

O encontro desses dois infinitos que se esbarram 
na troca de estações, cruzam entre si espectros 
que nunca se tocarão no tempo. 
O mesmo tempo que captura as rugas 
sob o sol cada vez mais voraz, 
enquanto a juventude se esvai 
diante dos olhos. 

Solange Firmino
Nov. 2022

2.1.23

Apetece entoar o Magnificat

Silena Lambertini


Uma luz branca freme tão rente a tudo o que é visível, 
que apetece entoar o magnificat com a mais cristalina voz, 
em devoção, em perplexidade, em agradecimento. 
A quem o louvor? A que prenúncio de alvorada? 
A que rumor festivo? A que invisível mão? 
Eu sei que um fogo divino contém todos os mistérios, 
todos os sacrifícios, todos os milagres, 
todos os castigos, todos os bálsamos. 
Eu creio na redenção dos que amam a vida 
e sonham, e sonhando se salvam. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 68

19.12.22

Natal e não dezembro

 

Ana Pires Livramento

Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio, 
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio, 
porque esta noite chama-se dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça, 
talvez seja Natal e não dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira 
In: Cancioneiro de Natal, 1971

Quem desejar ouvir o poema com a voz e a música do Pedro e ver o vídeo da Ana pode fazê-lo aqui:
                     https://youtu.be/0uskE-5TLeo 


Que venham os anjos que nos guardam refazer em nossas mãos um presépio de amor.

Que celebrem em nosso olhar o desejo da luz, a promessa da paz, a certeza do bem-estar.

Um Bom Natal e um Novo Ano Melhor!


Volto em  janeiro 


12.12.22

Interação Fraterna de Natal 2022

 A convite da Amiga Rosélia Bezerra aqui deixo a minha participação nesta fraterna interação de Natal.





Todos os anos esperamos por ti, Menino do Presépio. 
Estremecidamente. Sempre em dezembro. 
Sempre tão perto do coração. 
Vem, neste Natal, fazer-nos companhia 
e traz no teu olhar a inocência 
que todos tivemos no olhar
quando éramos crianças e te esperávamos.
Estremecidamente. Sempre em dezembro. 
Sempre tão perto do coração. 



                                          
Que a Estrela de Natal venha anunciar a PAZ 
em todo o mundo. 
Que a luz da vida habite os nossos corações.
Que o ano 2023 nos traga saúde e amor.


Graça Pires

5.12.22

Assombro-me da paisagem

Hengki Koentjoro


Na lonjura de vozes antigas seguro a luz. 
Assombro-me da paisagem. 
Deixo que as palavras cedam inteiramente 
ao indizível subterrâneo da paixão. 
Com um alarido preso à boca, leio os poetas 
das palavras claras e quebro 
no interior das pálpebras 
os versos mais cúmplices. 
Semelhante a um primitivo nómada, 
guardo comigo o fogo da poesia, 
para que nunca se extinga 
e me seja confissão e esconderijo. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 52

28.11.22

Em seara alheia



Com o meu coração inteiro 

Neste dia de coração com leme 
as marés consomem a esperança dos barcos. 

As mulheres observam, silenciosas 
o rumor urgente do mar. 
Enchem o olhar da luz golpeada dos peixes 
que emergem como quilhas. 
- É tão longo e ouvinte o seu olhar 
a decifrar as ondas. 

O poema fala a voz dos marinheiros 
Reconstrói-se, lágrima a lágrima 
como a noite que lhes segura os ombros. 

Lentamente como se escutassem a voz de um filho
retornam a casa e aconchegam ao corpo 
o voo agitado das gaivotas. 

Luísa Henriques 
Novembro 2022

21.11.22

Neste flagrante momento da memória

Ilya Kisaradov


Agora, neste flagrante momento da memória, 
recordo o teu vestido branco 
estampado de malmequeres. 
O dia abria-se sempre inteiro no teu corpo, 
onde a adolescência ainda breve te concedia 
a leveza das crianças e dos pássaros. 
Sei que é primavera quando os teus cabelos 
esvoaçam no desalinho da lembrança 
e o grito das flores irrompe das árvores 
em que balouçavas com alegria. 
Sei o teu nome porque danças sobre o meu nome. 
Sei onde moras porque o coração estremece 
quando te pressinto. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 16

14.11.22

Quando anoitecia

Francesca Woodman

Quando anoitecia, 
a sombra do corpo roçava 
a imprecisão da rua 
e as pedras entoavam 
seus passos agitados 
pelas esquinas. 
Quase em fuga, 
não reconhecia o seu rosto, 
atenta que ficava ao ranger 
das portas que se abriam. 
Por entre a multidão, 
ela suspendia nos cabelos 
o percurso da lua cheia. 
Por isso os morcegos 
e os homens a seguiam. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p.32

Quem desejar ouvir o poema dito pelo Pedro pode fazê-lo aqui:

                                                            https://youtu.be/4CNAZjY_Y-Y

7.11.22

Memórias de Isadora XXI




Tenho na lembrança um dia frio 
 na costa azul de frança. 

Recordo o uivo dos cães, o cantar dos melros, 
o quebranto que me tolhia os dedos, 
 as folhas do outono terrivelmente belas. 

Meus olhos procuravam e achavam 
uma fatalidade qualquer. 
Como uma premonição, 
um acto sacrificial, 
um chão movediço. 

Pelas sombras possuída 
procurava o inacabado gesto 
de aprisionar a luz em meu olhar, 
quando cobri meus ombros 
com o xaile vermelho 
para enfeitar a vida, 
agora em mim tão extenuada. 

Os sons que se ouviam eram de um tempo 
 nunca mais lembrado, nunca mais esquecido. 

Os cavalos, gritando, vieram no seu trote. 
De meu brilho se tomaram. 
Cavalgaram as ruínas do meu peito 
e meu silêncio sustiveram na garganta. 
O coração, tão breve, ficou suspenso 
por uma névoa que, num instante, se dissipou. 

Devagar bailando. 
Devagar morrendo. 

Graça Pires 
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p. 53-54

31.10.22

Em seara alheia




VII 

A infância, 
um bouquet de colmeias no peito 
e o sangue desenhado por Miró. 

Alberto Pereira 
In: Ecocardiodrama. Vila Nova de Famalicão: Húmus, 2022, p. 33


24.10.22

Quando a chuva se anuncia



Quando a chuva se anuncia intransigente, 
já não há andorinhas esvoaçando pelas casas 
nem se distinguem as dunas 
onde me deitei no mês das uvas. 
Na raiz de cada árvore começa a germinar 
a sede inicial agasalhada pela terra, 
em respiração lenta. 
As janelas fechadas provocam uma singular estreiteza, 
uma impressão vacilante nas mãos instáveis 
dos meninos e dos homens. 
Só as mulheres possuem a conivência das águas. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 35

17.10.22

Tempos houve em que pintava

Christine Ellger

Tempos houve em que pintava
com obsessão, paisagens amarelas. 
Folheando a sua revista favorita 
leu que uma estranha doença 
atingira todos os girassóis. 
Sentiu-se culpado. 
Quando voltou a pintar 
escolheu a cor negra.
Um esbatimento de luz 
anunciou a interdição do brilho 
em seu olhar, para sempre incerto. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 15

10.10.22

Memórias de Isadora XX




Experimentei, tantas vezes, 
o inesperado aroma 
das árvores da infância e a humidade 
do nevoeiro a entranhar-se-me nos ossos. 

Nos sabores, que à boca concedi, 
interroguei os mares, iludi distâncias 
e sobre o tempo saltei sem dar por isso. 
Indefesa me senti dos incontáveis 
artifícios da idade. 

Sobre mim se estreitava, eu pressentia, 
uma morte inescapável. 

Por capricho dos deuses 
nada é perene, nada sobrevive 
à implacável raiz que a terra exige. 
Nada resiste às leis que a própria vida impõe. 

Recolhida na resguardada luz 
dos poentes convergia e afastava 
as sombras como uma prece. 

Pelas concavidades da noite 
ouvia tocar os sinos da igreja 
e era como se um veneno me alagasse inteira.

Graça Pires
De Jogo sensual no chão do peito, 2020, p.52

3.10.22

Em seara alheia




[A Palavra] 

Dizem que a palavra morre 
Quando é dita 
Num qualquer dia. 

Eu digo que a palavra 
Só começa a viver 
Nesse dia. 

Emily Dickinson 
In: Versos traídos: antologia de poesia traduzida por Carlos Campos. Lisboa: Edição de autor, 2022, p. 41

26.9.22

No outono

Magdalena Russocka 

Um punhal certeiro como um aviso 
atinge o dia tombado 
sobre o melindre das folhas no outono. 
Na duração das noites, há árvores estéreis 
que naufragam com a chuva 
e deixam um alagado eco sobre a terra. 
A água escorre entre o alinhamento regular 
das oliveiras que aguardam o frio 
nos lugares onde a paisagem 
é um campo sem lavoura, 
sem searas, sem celeiros. 
Lugares onde se recolhem as formigas 
e a nostalgia das sementes. 
Lugares onde os beirais ficam vazios 
e, na cintura das mulheres, 
se quebram as lanças da paixão. 
Sinto em mim a ressonância calada da terra. 
Capto os sons do vento abraçando 
as árvores como um queixume. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 46

19.9.22

Uma tempestade no peito

aykut ydogdu

Emigro de mim. 
Nunca ignoro a geometria de agitadas águas 
visível nos seixos mais incertos, 
quando uso um pretexto de fuga 
para percorrer os mares abertos, 
costeiros, ligados à terra. 
Uma tempestade inusitada no peito 
decifra a cor indefinida das marcas digitais 
dos que tacteiam a estranheza dos barcos 
com nomes de mareantes 
impressos com sal e sangue. 
Aves marinhas cantam-me nos lábios 
estranhos sinais. 
Risco então em cartas geográficas 
o delírio dos mastros pressentido 
na minha voz navegante. 
Fixo-me às tábuas com nós de marinheiro 
e a carga do navio tem o peso do meu corpo. 
Depois de eu morrer haverá o rumor do meu olhar 
luzente sobre o mar mais intranquilo. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 43

12.9.22

Fala-me da tua infância

Cristina García Rodero

Fala-me da tua infância 
para que eu possa procurar a minha. 
Onde está o berço, a cambraia, 
a saliva na teia dos dedos? 
Diz-me, conta-me os lugares 
e os jogos da tua meninez. 
Quais as brincadeiras, 
os heróis, as teimas? 
Deixa-me partilhar contigo 
o cume da montanha 
onde te escondias, sem ruído, 
nos detalhes do horizonte. 
Permite que o manancial de teus olhos 
se derrame nos meus olhos, 
para que os dias não cubram de secura 
a memória da água. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 29

5.9.22

Em seara alheia



Não consigo explicar a poesia. Ela é água para a nossa sede. 
Ela agarra o céu e o mar. Ela nasce em mim como uma fonte, 
cujo caudal tenho de trabalhar. É um ofício de água. 
É um maravilhamento total. Não sei mais nada. 

Maria Teresa Dias Furtado 
In: Ofício da água. Lisboa: Poética, 2022, p. 27

29.8.22

Queria em seus dedos


Maria Kaimaki


Queria, em seus dedos, um contexto rebelde. 
Procurou a cicatriz dos dias, o risco da vida 
e da morte, o choro dos filhos nas horas aflitas. 
Com a perícia das unhas arranhou os poros da pele 
para não temer o suor nos sulcos da lembrança 
quando espalhasse no peito o sal líquido 
onde encalharam as barcas da paixão. 

Graça Pires 
De A solidão é como o vento, 2020, p. 47

De quiserem ouvir o Pedro podem fazê-lo aqui:
                                                    

                                            https://youtu.be/xUWL-vmi49w

22.8.22

Por onde caminha Antígona

Ilya Kisaradov

Traço, neste texto, uma linha utópica 
por onde caminha antígona com o olhar orvalhado, 
confrontada com a tradição sagrada e a lei, 
com o amor e o ódio. 
Pronta a morrer por acreditar 
na justeza do seu gesto. 
Deixo-a passar, conflitual e pura, 
numa tragicidade instintiva, sublime, quase mística. 
Personificação de um lúcido desespero. 
Deixo-a passar como uma sombra branca 
onde as minhas mãos difusamente se perdem 
e se encontram, para urdirem uma dualidade fraternal 
e cúmplice que se consome no meu peito. 
Um pretexto mítico arrasta-me para o coro trágico: 
o homem nada sabe sem queimar os seus pés no fogo ardente
Mas recuo, desarticulando da minha voz reticente todas as contendas. 
Não sigo antígona. Interiorizo apenas a inquietante aflição 
e a desmesura de um conflito tão tremendo, tão sacrificial. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021. p. 57

25.7.22

A graciosidade da juventude

Ana Pires Livramento


Uma vacilante clareza assume 
o exacto perfil da idade na passagem dos dias. 
Há resíduos enigmáticos na vertente 
dos sonhos esquivos 
quando uma saia a esvoaçar 
se pode transfigurar em linguagem sensual 
e a presilha de um sapato 
tem a graciosidade da juventude. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.16

Se desejarem ouvir-me no poema, ver o vídeo da Ana, escutar a música do Pedro podem fazê-lo aqui:

                                 https://youtu.be/iNh3PVoU8Fc                                           
                        


Minhas Amigas e meus Amigos, vou fazer uma pausa. Voltarei a 22 de Agosto. Desejo que passem uns dias tranquilos, com saúde, paz e conforto.

Beijinhos.