22.12.10

De uma memória tão antiga

Gaudiol


dizer Dezembro como se o mar tocasse a voz
ou dizer uma rosa rubra atravessada
por lábios de luz.
dizer o oriente de uma estrela
e vestir a pele de um poema.
mas a palavra é uma criança tolhida de frio
nos cabelos nevrálgicos que a árvore segura.
e assim amanhecemos, tardios e ébrios
no carrossel que orquestra a cidade
com tambores de solidão.

dizer corpo e ser ponte sábia para o outro lado
e a vida ser tão simples como a mão
que toca a pele da sílaba
de uma memória tão antiga

como as solas de uma infância gasta.
dizer amor, esse fósforo que incendeia
e ser fogueira na nervura da palavra.

despir o olhar desta erosão de distância.
agasalhar os pés e resguardar
o dorso lírico do sangue
como se a um poema de Natal bastasse
o verde inflamado de um arbusto:
o labor inteiro do meu coração de terra.


Luísa Henriques


Um Natal de Luz.
Um ano de Amor.

15.12.10

É do mastro mais alto

Claude Simon


Quando, a breve prazo, a caligrafia
transforma as palavras em navio
é do mastro mais alto que o silêncio
adere à pele como um suor salgado
atraindo o golpe de asa onde a língua se fere.


Graça Pires
Em O silêncio: lugar habitado, 2009

8.12.10

Em seara alheia

BARCO

Este é o barco que navega
Muitos mares
Longitudes
Plenitudes
Âmago
Desânimo
É o barco brando verde
Que me sulca
Me cruza
Interpreta
E me devolve ao cais.


Maria Paula Raposo
In: O verbo ser. Lisboa: Apenas Livros, 2010

1.12.10

Insular

Ana Trindade

Entre o outono e a neve
construí uma ilha
e deixei correr nos meus olhos
a véspera de um rio
e a linguagem absurda das ideias
com identidade suspeita.
Na vertente do corpo
havia um lugar frágil,
onde o cheiro das maçãs
se transformava em orvalho
e as mãos escorregavam
pelo lado morno da voz,
até à represa de um chamamento azul.
Vim do lado sul
de todos os caminhos
que vão dar à sede.
Conheci a turbulência
de um verão intacto
e desenhei a curva
incontornável da lua cheia.


Graça Pires
Em Poemas, 1990

24.11.10

A oriente dos sonhos

Dorothea Lange


Aqui já ninguém se comove
com canções românticas.
Noutros lugares talvez.
Não aqui, onde há homens encostados
ao muro do desencanto,
esperando o fuzilamento da sua sombra
a oriente dos sonhos.

Graça Pires
Em Conjugar afectos, 1997

17.11.10

Canções sem palavras

Pouco a pouco desfolharam-se as rosas
em todos os jardins iniciando o enredo
das chuvas sobre as casas.
Estávamos no mês em que os crisântemos
se tornam mais brancos.
Contra a luz não ousávamos quebrar
o silêncio que na música se abrigava.
Schubert e as canções sem palavras.
O arco da voz preso no violoncelo.
O piano e o rumor sublime dos anjos.
Escutávamos a palavra não dita da sonata:
o azul dos lírios em quintais antiquíssimos!

Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

10.11.10

Pode ser um grito

Gleb Garanich


Às vezes nascem do silêncio os dedos do medo,
com anéis de falso ouro oxidado pelo brilho
do olhar de quem pressente um luto inesperado
ou um pássaro à beira do sangue.
E sabemos que a morte pode ser um nó
ou um grito ou uma trepadeira enroscada
no corpo ou na lápide onde escreverão
o nome que tivemos.

Graça Pires
De O silêncio : lugar habitado, 2009

3.11.10

Em seara alheia


30.

procura o curso da água
se te acercares do rosto
da cidade.

todos os homens
beijarão as tuas preces à
medida que sobrevives ao
ventre do teu vestido dançando
ao som do alaúde.

retomo o silenciar da romaria
sem, ao menos, chorar as ondas.

Jorge Vicente
In: Hierofania dos dedos. Coimbra, Temas Originais, 2009

27.10.10

A velha nespereira

Ana Pires


Em contraluz, a velha nespereira
tem um perfil de vigília.
Quem dela se aproxima pode ver os múltiplos
ângulos do dia explodindo na ramagem
dando à terra um rosto iluminado.
Ao fundo da noite haverá sempre um luar
marginal com que ilustrarei o poema.

Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

21.10.10

Habito a deriva dos labirintos

Paul Strand


Habito a deriva dos labirintos,
com vontade de ser cativa de uma presença,
de um nome, de um aceno.
Sou um peregrino.
Recorto nos pés o caminho da terra prometida,
embora um estranho afecto
prenda os meus passos a um rumo incendiado.
Sou Ícaro rasando, imprudente, um amor proibido.
As minhas asas se fundem no absurdo de sensações
que me levam a um qualquer tormento,
abismo do meu próprio imaginário.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

14.10.10

Esperou pela mais baixa maré

Friedrich


Seguindo a linha sinuosa do horizonte,
ele estudou o lento esvoaçar dos pássaros
circunscrevendo o mar.
Esperou pela mais baixa maré
para adormecer sobre as rochas.
Agora, todas as manhãs,
é da sua boca que debandam as aves
litorais em direcção aos ventos do deserto.

Graça Pires
De O silêncio:lugar habitado, 2009

6.10.10

O ofício das mãos

Vermeer




O ofício das mãos não se intimida
com a apressada cadência do tempo.
Não tem fim o silencioso enleio
que se esconde por entre a argila
nos dedos do oleiro; ou se enrola no linho
dos lençóis tecido pelas mães; ou se prolonga
no pão quando chega o mês do trigo.
Porque esse é o destino das mãos,
tão alheio à urgência de cada dia.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

29.9.10

Em seara alheia

Sentaram-se na areia e descalçaram os sapatos.
Puseram-se a contar pelos dedos os barcos
que faltariam para chegar o verão.

Nenhum deles falava. Tinham passado juntos
algumas noites, num quarto sem vista. E, embora
julgassem o contrário, não conheciam um do outro
muito mais do que isso.

Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.

No verão
alguém viria forçosamente buscá-los.

Maria do Rosário Pedreira
In: A casa e o cheiro dos livros. Lisboa: Quetzal, 1996

22.9.10

Sou habitante da cidade

Gérard Castello Lopes



Sou habitante da cidade, como os pombos
que esvoaçam a esperança de lés a lés.
Sou habitante da cidade,
como todos os sobreviventes
do cansaço ritmado dos horários.
As ruas esvaziam-se.
Um som sufocado de baladas protege
os culpados das ruínas do outono.
Em vão me iludo
com a claridade da cidade desperta.
Ninguém chora a noite
depois da passagem dos barcos
pelo olhar das pessoas desprevenidas.

Graça Pires
De Outono: lugar frágil, 1994

15.9.10

Faço do pensamento a muralha de um cais

Monet


Sempre foram fortuitas as palavras
na génese da utopia. Eu sei.
O exílio existe num quarto vazio de abraços,
quando a agonia pernoita
no interior aguado dos olhos.
Faço do pensamento a muralha de um cais.
Nos teus dedos vejo um mar
com um barco em primeiro plano.
O teu corpo, húmido aviso dos meus sentidos,
tece cumplicidades na minha língua.
Os nossos movimentos equivalem-se:
Ondulação lasciva. Labirinto de búzios.
Agasalho secreto.
Os teus olhos atónitos com o júbilo dos meus.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

9.9.10

Memórias de Dulcineia XIX

Ana Pires


Morreste sem alarido.
De que morte?
me pergunto.
Descentrado no tempo,
rasgavas o silêncio
dos caminhos que te perseguiam.
A via-láctea, entretecendo
teu delírio, nunca me devolveu
a forma imprecisa do teu vulto.
Inclino o rosto
para a luz dispersa da lua
e vejo o teu nome
nas pupilas das aves nocturnas.
Deixo, então, que soltem tuas cinzas
na mancha desta página,
onde ainda ressoam os teus passos.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

1.9.10

À procura das fontes


Manuel Fazenda Lourenço



Ela abria as mãos sobre as pedras e ouvia
o som da água na margem das encostas.
Conhecia o voo dos pássaros aninhados
na trepadeira da latada e o reflexo da luz
escondida na chuva das manhãs.
Lavrara o campo, eito a eito,
com o corpo aguçado de paixão.
Um dia, ao acordar, sentiu que as nascentes
lhe mirravam no rosto.
Por toda a parte as fendas da sede sulcavam o chão.
Nunca mais foi vista.
Enlouquecida anda de terra em terra
à procura das fontes,
com um punhado de lama enrolado em cada pulso.


Graça Pires
De Saudade: revista de poesia, nº 12, Jun 2010. Organ. de Amadeu Baptista

25.8.10

Em seara alheia





Na impossibilidade de hoje te florir apaziguo a saudade muda e áurea singularizando a memória. dirás no teu canto de cinzas que nada mudou. que o tempo é só um coração aberto à espera de ser prado. direi mãe. apenas. e terra. onde a lágrima se fez flor. e luto. despenhado nos teus cabelos brancos.


Isabel Mendes Ferreira
In: As lágrimas estão todas na garganta do mar. Lisboa: Arcádia, 2010

18.8.10

Adormecemos com sede



As águas baixaram.
Amainada a maré vieram as gaivotas
poisar-nos na janela.
O brilho inesperado dos barcos
e das dunas doía no olhar.
De olhos fechados, ainda assim,
nos perturbava a clareira de bruma
que alastrava do mar.
As gaivotas, essas, traziam nas pupilas
um rebentar de ondas que nos ensurdecia.
Ao anoitecer jantámos em silêncio
e adormecemos com sede.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

9.8.10

Sem possibilidade de fuga

Edward Hopper


Sem possibilidade de fuga
habito a luz intensa da treva
e guardo, no olhar, a líquida sombra,
que sobrevive na memória dos barcos,
quando a madrugada se rasga,
devagar, na plenitude dos mastros.
Eu não sei a cor dos navios,
quando os marinheiros avistam as dunas
e o cheiro quente da areia arde em suas bocas.
Apenas sei a cor agressiva de meus olhos,
condenados à errância das sombras.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

29.7.10

Calaram-se os pássaros

Ana Pires

Calaram-se os pássaros.
Regressou enferma
a ave que rasgou a sombra
das árvores em pleno verão
sem encontrar o caminho para a chuva.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

21.7.10

Em seara alheia



Excessos

A partir de hoje vou usar todas as palavras.
Não vou corrigir as sublinhadas a vermelho.
Muito menos escrever a palavra certa dez vezes
ou aceitar castigos. Não vou evitar
as que se conseguem escrever nas entrelinhas,
ainda que tenha que as tornar visíveis.
Vou desbocar a boca na vulgarização do verbo.
Desembargar a voz, libertar do cárcere
o meu malvado espírito,
desvendar mistérios de cabelo farto.

A partir de hoje vou elevar o tom da minha voz.
Proteger-me da resposta.
Afirmar as rebeldes vontades.

A partir de hoje despi-me de roupas escuras.
Cortei o cabelo e pintei-o de preto.
Farei o luto na cabeça, para o aliviar na razão.

A partir de hoje, não darei qualquer espaço ao coração.


Luísa Azevedo
In: PIN - Uma explicação de ternura. Porto: Edita-me, 2009

12.7.10

Pela noite


Pedro Pires

Pela noite, as sardinheiras aprisionam a luz,
para enganar a morte dos desejos.
É por isso que o olhar matinal dos pássaros,
em pleno voo, nos pode enlouquecer.
Pensamos então: um pranto que desagua
nas dunas, não absolve o remorso
dos barcos seduzidos pelo vento.


Graça Pires
De Quando as estevas entraram no poema, 2005

29.6.10

Desejo

Magritte

Sei o som dos passos
com que regressas a casa.
No quarto virado a norte,
a prevenir-nos de todos os invernos,
aguardo que prolongues em mim
a tua sombra intacta.
De frutos doces me enfeito.
Uma luz quase clandestina
inunda minhas margens
e deixa-me um rio no vinco da cintura.
O teu desejo terrivelmente puro!


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

17.6.10

No meu país

António Quadros



No meu país havia marinheiros
com braços de tempestade.
Havia um cais e um sonho
ateado em cada mastro.
E havia no vento o chamamento do mar.
Havia no meu país o voo antigo dos pássaros
para adivinhar a sina dos homens.
O mistério do sangue e do parto
e o uivo das fêmeas em noites com lua
havia também no meu país.
No meu país havia a terra e a memória
e os cantares de amigo
e a pressentida eternidade das palavras.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

10.6.10

Em seara alheia

UMA VIDA

A lua lambe os limos fétidos. Aborda o cais. Espreguiça o sono. Isto era um rio.
O nosso. Reconheces aqueles dois? Há três mil anos que ali estão. Uma vida.
Ora acordam, ora adormecem. Às vezes gritam, mas ninguém os ouve.
Às vezes amam, mas o amor pesa-lhes. Da janela vejo-os passar. Buscam.

Alice Fergo
In: Quando junto às horas se ilumina um rio. Fafe: Labirinto, 2010

3.6.10

Consentidas emoções

Edward Hopper




Com flores exuberantes
em torno das ancas rememoro
incontáveis sombras no meu rosto
e traço os caminhos em que me perdi
como quem empunha no fundo
da memória a bandeira ou a espada
de consentidas emoções.
Não voltarei ao sobressalto
dos lugares marcados com sangue de fêmea
para que o instinto me não rasgue
a pele dos seios.


Graça Pires
De Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos, 2007

27.5.10

Do lado mais calado do tempo

Walker Evans

Do lado mais calado do tempo
podemos falar das mãos das mães,
tão frágeis, quando trazem nas costas
a febre dos filhos.
Podemos sentir o rosto perturbado
das crianças que nos mostram a boca
mordida pela fome.
Podemos querer de volta o fascínio
dos papagaios de papel e do tempo
em que não faltava ninguém
nas fotografias da família.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

20.5.10

As papoilas devassam as sombras

M. G. Luffarelli

De costas para o meu rosto
as papoilas devassam as sombras
e assinalam o destino de um grito.
Um grito alucinado que evoca, em todos os tronos,
a perenidade dos gestos sem mágoa.
Aqui, nesta cidade sem voz,
pouco me importa a miscelânea de pretextos
desatada nos meus pés.
A rosa dos ventos altera o norte das interdições
e denuncia os destroços da casa desmoronada
que reconheço nas palavras cruéis.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

13.5.10

O silêncio pressentido

Vincenzo Balocchi

O vento da tarde entra pelas casas sem convite
e enreda nos vidros o excessivo horizonte do mundo.
Em paredes ásperas deixamos escorregar
o silêncio pressentido no clamor do olhar
quando o verão se anuncia com suas farpas de fogo.
Ao redor de tudo, as casas permanecem
encerradas à insistência do sol.
Dentro delas podemos imaginar as mulheres
curvadas sobre os filhos abrindo as blusas
para que o leite e o sangue afugentem
a morte rente às bocas.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

6.5.10

Em seara alheia



Navegação

Não avistarei a terra depois desta nua solidão.
Sem luz e sem imagem, o vazio
inventa-me e consome-me
como este sonho cruel que já não é meu.
Não lembrarei os meu olhos, a minha voz, o meu segredo.
Dobrarei os ventos para apagar a minha forma
e adormecerei meu corpo na doçura terrível do esquecimento.
Não avistarei a terra nem este mar lembrará que existe.
Nenhuma solidão lembra o seu regresso
se dela parte e ela é o seu único destino.


Marta López Vilar
In: La palabra esperada. Versão portuguesa de Marta López Vilar. Madrid: Hiperión, 2007

29.4.10

Mãe

Ana Pires



Só na memória do teu rosto, mãe
posso encontrar agora as paredes
da casa onde nasci.
Como se fosse possível voltar
àquele tempo em que a felicidade
residia nas tuas mãos
entretidas a encaracolar os meus cabelos.


Graça Pires
De Caderno de significados, 2013

22.4.10

A Poesia andou na rua




Os barcos têm sede: falta mar.
Os lenços não respiram: falta vento.
Que outro (a)mar das marés do teu olhar
me tragam ao país a que pertenço.

Os vidros têm fome: faltam cravos
assomados às janelas do futuro.
Da teia dos meus dedos farei barcos.

Serão velas as palavras que procuro.

Hugo Santos
In: Armas de (a)mar. Lisboa: Ulmeiro, 1988

15.4.10

Em seara alheia



sabes, mãe. uma asa não deixa de bater
porque cai do corpo de um pássaro.

o nome que nos dão, ao nascer,
fica nos retratos, nos envelopes intactos,
nos poemas que hás-de escrever.

às vezes, é o medo que escreve,
outras é o vento, quase sempre
é o vento que escreve, mãe,
quase sempre é o medo.


Alice Macedo Campos
In: Um cão em cada dedo.


Este poema foi-me carinhosamente dedicado pela Alice num momento irremediável da minha vida. Obrigada, minha amiga.

8.4.10

Alguém me disse

Ana Pires

Alguém me disse, um dia, que as aves
marinhas vão morrer (ou repousar)
no solitário coração dos barcos afundados.
Que sugestão de luz lhes indica
o inevitável caminho das águas mais azuis?


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

2.4.10

Na data prevista


Maria Clarinda


Na data prevista, desfez-se a noite
em sombras autobiográficas.
Demandei, por isso, o mais distante navio
para alcançar a geografia das sílabas
e conquistar um silêncio
tão propício à evasão
como um planar de pássaros sobre o mar.


Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997

25.3.10

Memórias de Dulcineia XVIII

Gustave Dore

A notícia se espalhava:
um cavaleiro andante
em doida cavalgada pelo vento,
ridículo, intruso de si mesmo.
A notícia corria de boca em boca:
um herói de batalhas não travadas,
excluído da sorte.
A notícia vinha e voltava com os pássaros.
Da notícia falavam.
Todos. Sempre.
Como quem ri da própria tristeza.


Graça Pires
De Uma extensa mancha de sonhos, 2008

18.3.10

Tão cúmplices, as palavras


Edward Hopper
Às vezes vêm de muito longe:
de fatigadas viagens,
de mortes prematuras,
de excessivas solidões.
Mas vêm.
E trazem a inicial pureza das fontes.
E a lâmina do silêncio.
E a desordem da noite.
E a luz extenuada do olhar.
Tão cúmplices, as palavras.



Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

11.3.10

Em seara alheia


Devia olhar o rei
Mas foi o escravo que chegou
Para me semear o corpo de erva rasteira

Devia sentar-me na cadeira ao lado do rei
Mas foi no chão que deixei a marca do meu corpo

Penteei-me para o rei
Mas foi ao escravo que dei as tranças do meu cabelo

O escravo era novo
Tinha um corpo perfeito
As mãos feitas para a taça dos meus seios

Devia olhar o rei
Mas baixei a cabeça
Doce terna
Diante do escravo.

Paula Tavares
In: Manual para amantes desesperados. Lisboa: Caminho, 2007

4.3.10

O buscador de pérolas


Era um buscador de pérolas.
Atravessou a mais densa escuridão
para abrigar na expressão do rosto
uma luz absoluta. Ficou cego.
Agora há uma ferocidade
suspensa nos seus olhos.
E dorme pelas praias
onde só as mulheres
vestidas de negro
escutam o grito das areias.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

25.2.10

Tiro a máscara

Rudolph Tegner

À queima-roupa, tiro a máscara
com que me desfiguro e transfiguro.
Desenho na cara o mirante
donde se avista a via-sacra das quimeras.
Transmuto o medo
e projecto na alma um pássaro solto,
volúvel e imprevisível como um rio.
Construo, no meu peito, o vaso baptismal
onde a minha orfandade se redime.


Graça Pires
De Labirintos, 1997

18.2.10

Diz o que quiseres

Marta López Vilar


Quando a imensidade das sombras
se acercar de mim promete que dirás
que fui com as aves matinais
pernoitar à boca das marés em busca
do sulco da lua pelas noites dentro.
Diz as coisas mais banais.
O que quiseres. Diz.
Nunca te faltam as palavras
para enganar as sombras.


Graça Pires
De O silêncio: lugar habitado, 2009

20.1.10

ATÉ SEMPRE, MÃE







Até sempre,
Mãe






Mãe

Mãe: Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?
Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.


Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!
Miguel Torga
As rosas são do D'Ângelo

14.1.10

Em seara alheia


INDOLOR

Quando eu tiver
As mãos doridas
De tanto escrever
Invento uma forma
Indolor
E escrevo
Na parte de dentro
Das folhas
Onde não magoa
O poema
E onde as mãos doridas
Poderão
Descansar
Sobre a luz
Da memória.

Maria Paula Raposo
In: Marcas ou Memórias do Vento. Lisboa: Apenas Livros, 2009

7.1.10

O rumo das palavras

D'Ângelo


No fim da tarde, apenas é incerto
o rumo das palavras.
Divago entre verbos uma intriga qualquer
cruzando hipóteses sobre hipóteses,
escada de múltiplos sentidos
por onde vou e venho e volto
e me transformo num absurdo Sísifo
neste vai e vem inconsequente
que faz calar os deuses do efémero
e me arrasta o pensamento
até à criação de não sei que esperança,
de não sei que fantasmas do meu próprio sangue
onde todos os rostos são mortais
mas possuem a marca de almas
condenadas a um lendário paraíso.

Graça Pires
De Conjugar afectos, 1997