27.6.22

Interioridade

Ana Pires Livramento



Aqui estou, cercada de mim, 
melancolia trazida 
do interior de um bosque, 
silhueta a preto e branco 
na figuração de um pássaro em voo lento. 

Há quanto tempo, 
só eu sei quanto, 
as amarras de um barco 
se quebraram, 
no interior frágil 
do instante em que fui vento,
ou apenas um abandono breve, 
como as mãos no acto de dar. 

No ângulo do grito e da língua 
se explica a leveza das lágrimas, 
circunfluência no interior das pálpebras, 
longínquo lago na cintura dos lábios. 

Cheguei ao lugar onde se cruzam 
todos os ventos sem hálito 
e chamo pelo nome os frutos e a fome, 
para que ninguém se comprometa 
ao tocar nos meus ombros.

Graça Pires
De Poemas, 1990, p. 43

Este poema faz parte do meu primeiro livro "Poemas" que, no dia 29 de Junho, faz 32 anos que foi editado.

20.6.22

Em seara alheia



Pés 

Leio as tuas palavras numa cidade 
estranha e cheira-me subitamente a 
pão e a casa. Ter-te comigo é como 

poder andar descalça pelo mundo. 

Maria do Rosário Pedreira 
In: O meu corpo humano. Lisboa: Quetzal, 2022, p. 82

13.6.22

Escrevo água



Tremem-me os dedos ao separar retratos antigos, 
ao anotar os nomes, ao deixar que cada rosto 
se insinue no meu âmago, 
nos degraus de uma interminável espera. 
Escrevo água para alagar o útero maternal 
e distingo ao longe a minha sombra, 
com o coração inclinado sobre o meu ventre 
duplamente fecundado. 
Um abraço é o íntimo afago em que me reconheço. 
O embalo consentido na plenitude do desejo 
que ao corpo apetece e a alma confirma. 
A perturbação presente na memória 
como um horizonte 
para sempre visível na bênção das mães. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 36

6.6.22

O culto mais privado dos sonhos

Katia Chausheva

E o culto mais privado dos sonhos 
rasga o véu que me cobre 
quando um contido silêncio 
é uma lâmina de frieza 
a magoar-me a pele. 
Em vão me escondo no lado oco 
das paredes para não ver as areias do tempo 
deslizando, apressadamente, 
sobre a pétala que esvoaça na neblina 
como um aceno da vida ou pairando 
sobre as manhãs em que os pássaros 
perdem o sentido do voo. 
Há um delta de fogo a esboçar um triângulo 
em meu perfil, secretamente seduzido 
com pormenores sagrados. 
Por isso afirmo: corre um braço de rio 
entre os seios das mulheres 
que guardam no ventre a fertilidade da terra.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p, 13