11.12.23

Interação Fraterna de Natal 2023

       A convite da Amiga Rosélia aqui deixo a minha participação  nesta fraterna interacão de Natal





Escutamos a palavra Natal
e com o coração ausente de sombras 
deciframos suplicantes 
o ritual de dezembro. 
Um intenso espaço de luz 
resplandece em prece sobre a terra
como dádiva sobrenatural.
É o anjo que anuncia o Menino do Presépio.
São anjos de paz a abençoar o mundo. 

Graça Pires 
Natal 2023

Quero palavras brancas como asas de anjos
para convocar neste Natal a promessa 
de uma Luz de Paz e Amor.
Quero para todos um ano de 2024 MELHOR.

Até para o ano.

4.12.23

Tudo é breve

Monia Merlo


A cada pulsação 
perdura a inicial certeza 
de que tudo é breve. 

Se trocarmos os pés 
a deriva será o único caminho 
porque sabemos de aves cegas 
que trazem no voo 
o mapa incerto dos ventos. 

Por isso alinhamos os dias 
com a respiração. 
E escolhemos o silêncio 
para nomear as flores 
e partilhar o enigma branco 
das boninas no hora do crepúsculo. 

E deixamos deslizar a meia-luz 
no ângulo do olhar tão subornado 
pela trama dos momentos 
que nos legitimam a existência. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 20

27.11.23

Em seara alheia



Onde nasce o silêncio 

Quando se abriga na memória dos barcos, 
na superfície inquieta do mar 
e sobrevive na plenitude dos mastros. 

Quando se aprende a não perder o rumo 
no momento em que rema, 
assim que as aves fugazes 
sopram segredos da noite dolorida. 
Aí mora o silêncio. 

Quem está distante da infância se guia pelas marés, 
ouve de longe o timbre de sua voz nas águas, 
clamando o próprio nome 
nas viagens incertas dos marinheiros. 

Na solidão da paisagem, 
quando há algum naufrágio, 
sempre volta a novembro, 
onde vê a criança que foi. 

Solange Firmino, 22 Nov. 2023 

Este poema foi-me oferecido pela minha Amiga do Brasil, Solange Firmino, no dia do meu aniversário. Muito obrigada, Solange

20.11.23

Um dia de novembro

Ana Pires Livramento


Uma premonição envolve em mistério
a manhã de nevoeiro de um dia de novembro
e desperta na lembrança os caminhos da inocência.
Em passo lento, em via-sacra,
assisto calada à passagem de mim.
O princípio e o fim dos caminhos
desvendam, no código dos ventos,
em rigoroso segredo, o meu perfil,
a moldar as vertentes que me são voragem
e ofício no interior dos dias.
Pretendo um idioma insensato
para me definir ou pronunciar o meu nome.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 63

13.11.23

Bebo a própria sede

Michael Bilotta


Volto às palavras resguardadas no útero dos sonhos. 
Uma caligrafia exasperada quer ofuscar o brilho 
em meus olhos, exaustos de procurar 
a estrela d’alva no infinito do amanhecer. 
Dobro-me sobre as páginas em que me escrevo. 
Como se fora uma serpente, rastejo as letras 
com sílabas átonas para não desfocar a minha voz, 
quase ilícita, quando me refugio na paisagem 
para habitar as múltiplas geografias das sedes eternas. 
Bebo a tragos longos a própria sede e choro a tristeza 
extenuada de qualquer melancolia distante. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 55

6.11.23

Nenhuma palavra

Moisés Saman


Nenhuma palavra destrói um grito mudo 
um silenciamento em desamparo 
um muro farpado com arame 
uma chocante perfídia humana. 

Tentamos decifrar gestos confusos 
na turbulência de mãos intermináveis 
que enfrentam tormentas 
com o olhar cheio de cegueira 
à procura de um deus no suor da morte. 

Nenhuma palavra circunscreve o medo 
de olhares indefesos a pairar 
sobre uma paisagem impessoal. 
Nenhuma palavra redime as sombras 
dispersas no sangue de quem conhece 
o chicote da frieza e busca um ponto 
de fuga para agarrar a vida. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023. p.59

30.10.23

Nítidas lágrimas





Como se um aviso de luz me purificasse,
reconheço o meu vulto na ortografia
de nítidas lágrimas onde encontro
de permeio a vida inteira
e me busco cheia de abismo,
cheia de noite, cheia de labirintos,
cheia de palavras imperfeitas.
Talvez ninguém conheça a violência
da luz ao longo do rosto,
quando as lágrimas deslizam
em pequenas gotas sobre a pele.
A forma oculta do choro faz entornar
o hálito num estranho vazio.
A ferir a indecisão do brilho molhado.
A naufragar os olhos tão inundados de vento.

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 70

23.10.23

Oferenda

Manuela Barroso

                                                                                          
                                                                                                     Para a Manuela Barroso

Abres as portadas. 
Um brilho na floração do jardim 
que o amanho dos canteiros harmoniza 
expõe o teu olhar à contemplação da luz 
a fixar em cada flor o movimento do sol. 

O aroma da seiva alenta-te o dia que começa. 
O fluxo do sangue como uma oferenda. 
Improvisas uma oração. 

E procuras a trama verde das sombras
para amar a folhagem de árvores frondosas: 
floresta furtiva paisagem mágica 
presença divina abrigando os ventos. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 23

16.10.23

Entre ruínas



Pressentir a morte na desmesura de uma afronta 
na opressão interminável de cada rua queimada 
de cada disparo de cada cerco de cada agressão. 

A revolta presa na arma do terror. 
A coragem engatilhada nas mãos. 
O susto das sirenes no rosto dos filhos 
e na correria angustiada das mães. 
O clamor sufocado nas lágrimas 
e no sangue a quem dói violentamente 
o exílio do chão onde nasceram. 
A exaustão a golpear o corpo. 
A força do silêncio a ensurdecer o grito. 

Sem tréguas sem resgate sem sujeição 
hão-de abraçar-se fortemente entre as ruínas.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 64

9.10.23

Para me sagrar de silêncio

Ana Pires Livramento


Na linha de qualquer rio passaram águas 
que deixaram mais sedentos 
os lábios e a garganta. 
Cada detalhe de versos 
sem horizontes líquidos 
risca-me na pele o fracasso da voz 
desarticulando a paisagem. 
Rojo-me sobre os nomes que não esqueço, 
na imensa possibilidade de os tornar legítimos 
na precária imortalidade dos dias. 
Invento horas extras para me sagrar de silêncio. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 55

25.9.23

Nomes sem eco



Sangram nomes dispersos 
em bocas invadidas por aves migratórias. 
Nomes sem eco em infindáveis viagens. 
Caminhantes multiplamente estrangeiros 
submersos em cansaço 
com a fuga a latejar no olhar. 

O ritmo dos passos 
segue com lentidão o som do vento 
no fio da indiferença 
que goteja sobre as cidades agrestes 
com esquinas irregulares 
sem abrigo algum. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 50

18.9.23

Em seara alheia




20200416 - Num bairro moderno 

Hoje fui passear o cão 
Da melancolia. Saí. Não 
Aguentava já o surdo 
Latir do vírus, o vagir 
Da morte lenta nos ecrãs 
Das reportagens repetidas 
Do sofrimento que sempre vem 
Da natureza sempre cruel 
Digam lá o que disserem 
Os cantares da passarada 
Precipitando a primavera 
Nos líricos beirais. Hoje 
Fui de cão. Não há outro 
A que dar trela. 

Jorge Fazenda Lourenço 
In: Fim de boca e mais poemas (1981-2023). Lages do Pico: Companhia das Ilhas, 2023, 
p. 273

11.9.23

Dos desejos

Noell S. Oszvald 

Enfrentamos o rosto ansioso dos desejos 
com o enigma da posse 
no limite de cada gesto. 

Inquietos falamos longamente 
até a lentidão das mãos 
insubmissas nos perturbar. 
Até recolhermos nas palavras caladas 
a seda dos murmúrios. 
Até que se solte o rio já sem margens 
tão dono de seu júbilo. 

Pode ser nosso o ofício da ternura. 
É minha a ânfora da sede.

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 24

4.9.23

Uma luz indecifrável

Masha Raymers

Enquanto os meus passos 
tecem a sua teia pelo chão, 
neles se envolve, 
em desacertada simetria, 
o esquivo jeito das mãos, 
como se a febre dos gestos 
habitasse um desorientado tumulto, 
em busca de um silêncio 
que esboça o avanço dos dias 
com agudíssimos dedos. 
Estranha de mim, 
alienada à intuição de um recato, 
dramatizo o mais íntimo som das contradições. 
Subverto a linguagem do assombro 
num conflito insubornável. 
Amarrada às sílabas, 
roço a língua nas pedras 
para inflamar as palavras. 
Utilizo a minha biografia 
para sangrar o subtil veneno 
com que entreteço as sombras. 
Em meu redor, uma luz indecifrável 
alastra sobre os sentidos, 
sobre o interior da voz, 
devassando a vigília dos nomes 
que se me ajustam. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p. 12

14.8.23

Tão longe

                                                                       Michael Bilotta 


Tão longe inalcançável quase 
o tempo das palavras imprevistas 
inteiras insensatas transgressoras. 

Palavras presas aos dias 
em que era possível nomear 
tudo e nada com a urgência 
e a nostalgia do futuro. 

Um rastilho de sons 
detonava em minha voz 
como um desatino primitivo 
a relegar o silêncio 
numa avidez envolta na saliva 
em busca da água original. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 34


Volto em Setembro. Desejo a todas as minhas amigas e a todos os meus amigos dias cheios de paz e amor.

7.8.23

Deixem-me só

 
Kamille Corry   

                                                                                 
                                                                                                    
                                                                                                      Para a Graça Neto
Deixem-me só. 
Quero chorar como se me doesse 
o joelho esfolado no jogo da bola 
quando quase nada mais tinha para chorar. 
Quero tapar a cara para rir à gargalhada 
do pavor que a escuridão me causava 
quando quase nada mais me assustava. 

Deixem-me só. 
Porque agora não há pássaros silvestres 
a conceber em seu gorjeio o colo carinhoso 
onde me aninhava na hora da brincadeira 

e são de queixume as sombras 
que me assustam quando a periferia da noite 
declina sobre os meus medos.

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 19

31.7.23

Em seara alheia

 


Na teia frágil dos dias 

Não deixes que a tua voz se cale 
antes de ser eco. 
Não deixes que a magia desvaneça. 
Que nada na vida se interrompa 
antes que aconteça. 
Que nenhuma luz se extinga 
enquanto os olhos a pedirem. 
Que nenhuma carícia se perca 
antes das mãos entardecerem. 
Porque tudo o que acontece 
na teia frágil dos dias 
se esgota num imprevisível instante, 
num golpe de vento 
ou no rasgão fugidio de um poema. 

Albino Santos 
In: Poliedro. Viseu: Seda Publicações, 2023. p. 71

24.7.23

Veio de água

Silena Lambertini 


                                                                 Para Victor Oliveira Mateus

Ele esquecia o desacerto do pensamento 
anterior às palavras todas que escreveu. 

Declinava o eco dos nomes 
das vozes das mortes dos sustos. 

Deixava-se perturbar pelo murmúrio 
quase calado do veio de água 
sangrando a surdina 
de um rio nascente: 
boca e fonte 
tão mútuas da vertigem 
que antecipa a sede 
justificada na raiz íntima do verbo. 

Era a anunciação de um poema: 
fogo e lágrima lâmina e mel 
espaço onde o voo começa. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p.25

17.7.23

O tempo que passa

 

Nikolay Tikhomirov


E, no entanto, muda a direcção dos ventos. 
As mãos rondam os gestos. 
A lisura das horas segue o rumo de chronos. 
Um descuido na confluência de ruas
sem retorno arde sob os pés. 
São lugares improváveis onde se chega sem guia, 
só pela ocasionalidade de tudo, só pelo cheiro, 
só pelas lajes com arestas arredondadas. 
Um laço de ferro vem ancorar no peito as marcas 
que alarmam o tempo que passa, 
registado por relógios sem ponteiros, 
a alagar de suor hábitos antigos, 
como uma cilada ou um cutelo 
fendendo os dias tão breves. 
Com minhas mãos povoadas de acenos, 
toco a face intocável das memórias. 
E escrevo. Escrevo a síntese de íntimos silêncios 
para que não se banalize a minha voz diferida. 

Graça Pires 
De Antígona passou por aqui. 2012, p. 33

10.7.23

Em seara alheia



A carta 

Um homem escreve uma carta a uma mulher 
como se fosse um acto antigo 
O homem escolheu o mais terno papel rosa 
e sobrescrito a condizer _ com cantos violeta 
nele escreveu o nome da mulher 
e o lugar de destino 
O homem carregou de tinta azul a sua estimada 
e bela caneta que estava muda desde 
quando disse a última carta 
Escreveu a data na primeira linha 
o dia registado _ seminal 
com letras maiores escreveu no meio da página 
     Amo-te, tenho saudades 
na última linha, o homem assinou apenas 
com o seu primeiro nome 
O homem guardou a carta no sobrescrito 
que não colou _ beijou-o duas vezes 
e encostou-o à jarra onde tinha as flores 
que amanhã levaria para depositar 
no lugar inscrito a seguir ao nome da mulher 
Depois deitou-se para dormir e sonhar 
como fazia todos os anos. 

Luís Raimundo Rodrigues 
In: No espaço da minha boca. Edições Gato Cinzento, 2023, p. 92

3.7.23

O retrato da mãe


 

                                                                                                         Para o Manel


É possível que a imprecisão do retrato 
te iluda o olhar habituado 
aos pormenores da memória. 

As curvas da luz no rosto esvaecem 
a expressão que julgas ser triste 
no inacabado instante da imagem. 

Mas se observares a juventude 
estampada na pele a desafiar o tempo 
talvez seja alegria o que vislumbras. 

O choro e o riso na mesma moldura 
na mesma feição na mesma vida 
na mesma ausência. 

E a tua infância escondida no retrato. 

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 40


Para quem gostar de ouvir o poema e ver o vídeo feito pela minha filha Ana pode fazê-lo aqui:
                       
                             https://youtu.be/Ub2ud1BK_5o

26.6.23

Uma só visão

Michael Bilotta


Fugir como um herói. 
O medo nas narinas 
e o frio entre os dentes. 
Uma só visão a rebentar no rosto: 
a morte atónita dos homens 
que invocaram para si próprios 
o fascínio da vida. 

Graça Pires 
De Poemas, 1990, p. 29


Este poema faz parte do meu primeiro livro "Poemas" que, no dia 29 de junho, faz 33 anos que foi editado.


19.6.23

Torno-me cúmplice da paisagem

Vicki Mcmurry


Reivindico a identidade daqueles
que proclamam a natureza
em toda a sua resplandecência,
inicial e intacta.
Torno-me cúmplice da paisagem.
As cores e as sombras que o nascer do dia
me revela como se fossem a epifania
de deuses telúricos, celebram o pulsar da terra.
O equívoco do vento de junho à beira do verão
percorre as árvores e alucina as borboletas
escondidas nas trepadeiras,
a quebrarem a monotonia da realidade aparente.
Retardo o passo no ranger da areia
que se oferece e se nega aos pés descalços
e porosos a qualquer afago.
Do fundo da idade, o sal da boca
deixa-me pressentir a alternação das marés.
Cada horizonte é uma revelação
onde, náufrago, o olhar penetra a beleza
sempre excessiva do silêncio.
Tudo o que sei a sede mo disse,
repito para mim própria sem ambiguidades,
sem artifícios, para justificar a invocação
das águas, num argumento convicto.
Graça Pires 
De Antígona passou por aqui, 2021, p.61

12.6.23

Seduzido pela escuridão

©Shutterstock



                                                                                 Para o meu filho Pedro

O doloroso rigor do movimento 
de estrelas cadentes a ferir a noite 
adensa teu olhar inquieto 
já impregnado de sinais secretos. 

Seduzido pela escuridão delineias asas 
na fronte enquanto a estrela do norte alinha 
os pássaros nocturnos em sucessivos voos. 

Na hora do crepúsculo voarás devagar 
até anoitecer em ti e distinguires na via láctea 
 a cor de teus olhos bruscamente em chamas. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p.12

5.6.23

Em seara alheia




POUPANÇA 

Só um poema basta. 
Só uma palavra. 
Só um pingo de sombra 
desinquietando a luz do meio-dia. 

Só uma folha 
manuscrita com os olhos. 
Só o tic tac do despertador 
a marchar pela casa vazia. 

Só uma gota basta. 
Só uma 
se escorrer sem pressa pela fresta da sede. 

Luis Palma Gomes 
In: Fronteira. Edição de autor, 2022, p.30

29.5.23

Por onde andamos

Brooke Shaden


É inútil clamar contra tudo e contra todos 
quando os dias são como pedras de tropeço 
a ferir-nos os pés.

- Vê por onde andas filha 
para não te magoares
dizia minha mãe era eu menina 
e estouvadamente feliz. 

Ver por onde andamos. 
No sopro asfixiante das manhãs 
ferem-nos os nomes de tudo  
o que o olhar recusa. 
Como ignorar as marcas de sofrimento 
nas entranhas daqueles que carregam 
a fome no molde dos lábios? 
Como silenciar a áspera evasão 
presa a caminhos sem retorno 
no fervilhar dos dias 
em convulsivo fôlego? 
Como não tropeçar e cair 
se há meninos descalços 
agarrados aos passos que damos? 

Ver por onde andamos mãe?

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 52

22.5.23

Chuva

Silena Lambertini

Apetece a chuva a cair vagarosa e leve 
sobre o solo em lamentação secreta. 

Só assim germinará a paisagem 
no raríssimo rumor da relva 
no trigo desenhado com a foice 
sobre o ventre da terra 
nas uvas à boca do outono 
reavendo ébrios devaneios. 

E o poema será água 
a correr mansamente sobre o silêncio 
que grito algum pode quebrar. 

Graça Pires 
De O improviso de viver, 2023, p. 32

15.5.23

Em seara alheia




V

Deita-te comigo. 
O linho sobra. 
A noite também. 

IX 

Não me deixes entre as folhas. 
Sou árvore e tenho nos ramos 
o cio das aves em tardes azuis. 

XIV 

De todas as palavras possíveis 
escolhi beijo. O teu. Fica. 
Não leves contigo as nossas bocas. 

Lília Tavares 
In: Parto com os ventos. Edição revista e aumentada. Modocromia, 2023, p.91, 92, 93

6.5.23

Reencontro

Ana Pires Livramento

                                                                           Para a minha filha Ana

Pertence-te a última sombra da laranjeira 
plantada no caminho do vento 
no lado mais próximo do rio. 

O aroma espalhado é um sopro 
intenso no ar que respiras. 

Passeias com prazer. 
Cada passo é um convite 
a urgentes demandas. 

Em qualquer percurso existem 
paragens ao acaso onde te reencontras 
tão breve que foi a adolescência.

Graça Pires
De O improviso de viver, 2023, p. 11


               Vídeo:   https://youtu.be/Hyco98p09hc  

30.4.23

Em faces sombrias

                                                            William Klein

Estão cheias de gente 
as ruas por onde caminho e me demoro. 
Procuro uma senda de lágrimas 
em faces sombrias, para desviar 
até ao lado mais esquivo do peito 
o curso do rio onde flutua 
a sombra do navio nocturno 
que transporta a antiquíssima 
inocência dos meus olhos. 
Nas margens da noite, suspendo 
as mais profundas razões da memória 
para esquecer os momentos 
em que me doeu a desmedida 
desordem do passado. 
Por isso, conheço o fio invisível 
que percorre o interior da treva 
onde se protegem os girassóis 
privados do alvoroço da luz 
e os pássaros esmorecidos 
por não tocarem as nuvens.

Graça Pires
De Antígona passou por aqui, 2021, p.17

24.4.23

Liberdade, liberdade!

Luísa Henriques


À mercê de uma nova rota              

Depois do adeus 
- que é palavra que dói como uma espada- 
alforriada a noite abriu-se sem pudor  ao rio  à seiva. 
E foi um universo inteiro a abrir-se ao lume e à palavra. 
Vieram aos milhares os filhos da madrugada 
anunciando ao mundo outra canção. 
E de repente, tanto azul, tanto mar  aqui e além-mar. 
Os barcos desenharam novas rotas 
e até os pássaros enlouquecidos pressentiram a mudança 
nesse infinito ainda por navegar. 
As mães abraçaram os filhos 
uma pedra floriu, um cravo sangrou na espingarda 
era a vida como um beijo a ser cumprida 
sem roleta, sem o medo acantonado a cada esquina. 
Não há em verdade nada que apague este rigor no sangue 
este clamor de claridade 
esta vontade de gritar além do sol: liberdade, liberdade.! 

Luísa Henriques,  Abril 2023